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quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Filho de sapateiro, se não doutor...

A tábua da lixa, o ferro de burnir, a forma de ferro e as formas de madeira, a cera, a sola, a tomba, as gáspeas e as meias gáspeas, a alma, a cerda, a linha e a anilina, a borracha e o atacador, os pregos, a sovela da borracha e a sovela da sola, as meias solas, uns pontos, os ilhós, a graxa, o cuspinho, o martelo, o sapato, as botas, as sandálias, o molde, a cola, o salto, o meio salto e o salto alto, a vira, o protector, a máquina de coser, o contraforte, a fivela, a escova preta e a castanha, o calfe, o pêz e a torquês...
A tábua de negra lixa, elemento indispensável de autoridade, qual beca de advogado, funcionava como uma espécie de paternal régua de professor primário para os filhos de sapateiro, se não endireitavam prego, se não regavam horta ou se jogavam bola em vez de escola.


Tábua de lixa, qual férrea viúva negra trajando de preta lixa, que afiava faca na vira que aparava e emparava a vida...
Tirar o molde para ajustar a fôrma, de pé no chão para homens e mulheres já entradotes, contrastava com pé posto em elevado banco por donzela ainda sem noivo mas com dote, ou noiva casadoira já com pregões corridos e relidos na porta da matriz...como se diz.
Vi-lhe a perna do joelho ao artêlho, gabava-se ele sapateiro arteiro, pois vinha de saia plissada na Menina Camilinha comprada, e tirava molde para o direito e para esquerdo explicando que com os pés ainda a crescer, por certo, tinha de tirar molde outra vez..
Enquanto o “menino” acendia e rescendia no fogareiro, mexendo com ponta de torquês, aquecendo ferro de burnir para em vira pôr pêz, o “galinha”, por vezes de “vela acesa”, endireitava prego ouvindo o Ti Zé Cego... e galinhas tenho sete, e uma delas não tem crista, também lá tenho um marreco, que agora é contrabandista...
Anquetil, ciclista em foto esparramada em parede, rádio enforcado com corda pendurado em caibro com prego, bancos sem espaldar mas com emoções que serviam em matações, em almoços de sapateiro matador de “marrantcho”, sempre atrasado, qual primeiro ministro, artista, que para importância se dar, todos fazia esperar.
Sapateiro artista, aparador de viras e barba rija de semana, envolvidas em cachaço de pó de arroz sem aparato, com amaciador 444.
Perguntando e dizendo muito depressa, atirava enquanto barbeava...
Quemdevintecincotiraquantosficam?
Vinte, respondia! Quinze, dizia.
Ou parodiando lisboeta, que tentava gozar com safões de pastor sem calor, cumprimentava, perguntando.
Bom dia, pastor de vinte ovelhas! Respondia o pastor, ao alfacinha. Vinte ovelhas, não. Estas ovelhas, outras tantas como esta, e metade destas, é que são as vinte ovelhas. Com a breca, quantas ovelhas são, seu alfaceca?
Espalhados pelos bancos, de botas uns, de tamancos, outros, pais e avós aguardavam ansiosos por resposta de filho ou neto, caso afilhado não estivesse por perto.
E, um côvado, quanto é? E uma grosa? E um alqueire? De semente ou azeite, perguntava afilhado com receio de rasteira, às perguntas de algibeira.
Das pedreiras, muitos, da terra, bastantes, todos conviviam em família esperando vez sem senha de fila, sem rixas, ali não se faziam bichas, cada um contando pouco das suas apertadas vidas, espreitando o sempre diligente Requeita ou a circunspecta Marreca, que serviam tinto, traçado, ou “champerrion” adoçado.


Por ali aparecia, um homem, Matias, intelectual a dias, que entre dentes aplicava palavras de sete mil e quinhentos.
Intelectual que era, atagantava Manuel, já sapateiro, que em semana e meia em nova oportunidade, no Ti Sebastião Palhaço, sai barbeiro, diplomado.
Desafiando o saber ao bi diplomado, atirava.
Ó Manel, o Requeita queria que eu ao Domingo fosse buscar a Sexta. Disse-lhe que não porque hoje é Domingo e não é dia de trabalho, mas amanhã Segunda, vou à Terça, trago a Quarta, levo-a à Quinta, trago então a Sexta porque só é precisa para Sábado.
Sala de aula em silêncio... até o Rogante, cão da Rita, enfiou as orelhas entre as patas e ganiu...
Os homens alunos, descobertos, coçavam parcos cabelos e cofiavam barba assustada na iminência de corte rente.
Entra ainda mais gente, e a sala, qual cartório, passou a auditório.
Manuel que tinha feito quarta classe com distinção, enfrenta Matias, qual Lente, de pente.
Porque tudo era de ouvido, em linguagem falada, homónimas e homógrafas entram em debandada mas, Manuel, elevando o tom de voz, qual catedrático sem cátedra, responde.
Domingo e Segunda estamos confessados, a Terça é a terça de terceiras, terra onde se ganhava um terço do que se colhia, a Quarta é uma medida de volume, uma quarta de feijão ou milho, a Quinta, é a quinta de propriedade, e a Sexta, é a cesta que o Requeita queria que ao Domingo, fosses buscar.
Era, foi assim durante vidas o ambiente em sapatarias e barbearias, ponto de encontro entre saberes, entre dizeres, no interim dos afazeres. Ensaiavam-se por ali também os primeiros passos da esperteza que nem sempre é prima do saber...mas uma fonte de simplicidade, cultura popular e amizade.
Se quem me lê, percorrer mentalmente as ruas da terra deles onde sapatarias e barbearias existiram, e se se lembrar de quem lá viveu, poderá perceber o título desta aperaltada prosa.
É que eu tenho em Beja um bom amigo, filho de sapateiro, não doutor, engenheiro.

Manuel Peralta
Texto publicado no Reconquista de 8 de Outubro de 2010

5 comentários:

  1. Barbeiros e Sapateiros

    Em tempos que há muito se foram, não havia cafés e mais do que nas “tascas”, as oficinas de barbeiros e sapateiros, eram por excelência os lugares de tertúlia, focos de saberes, de dizeres e maldizeres.
    Em algumas até se leria O Século e o Diário de Notícias, que o Quinquêra distribuía.
    E nos casos dos sapateiros, de que conheci mais que uma dezena, só na rua onde eu morava, numa distância de 100 metros, havia três, pois de alguns deles recordo a sua disponibilidade e geito para o Teatro, nas maratonas anuais que pelo Natal e Ano Novo, o GDA dinamizava no salão da JOC.
    E sem grande introspecção, recordo-me do João Soares, pai do amigo Dr. Ezequiel, do Domingos “Cucharra”, pai do saudoso Jorge Eanes, do Manuel Aurélio, pai de um oficial superior do Exército, do João “Senhor”, que apenas vi representar uma vez e na Associação, pai do esclarecido “Leituras”.
    E a caracterização destes artistas, para o seu bom desempenho, terá muitas vezes estado a cabo, do Sr.Raul, creio que barbeiro, que acumulava com a extracção de dentes.
    Temos portanto já aqui, uma curiosa acumulação de saberes, na função que desempenham no dia-a-dia e que lhes permitia alimentar e educar os filhos, com uma apetência pela Arte, expressa no entusiasmo e empenho que dedicavam no desempenho das suas personagens.
    Oficinas de saberes, a decoração das mesmas, era muito sóbria.
    Na oficina de barbeiro do meu tio Francisco, barbeiro oficial do Seminário, onde comprava jornais ao Kg, para embrulhar o bacalhau ou o sabão em barra, que vendia na mercearia, uma gravura que representava creio que a Batalha de Waterloo, atraía a minha atenção. Porém entre os inúmeros Novidades e Correios da Manhã, os jornais do regime que vinham do Seminário, vinham por vezes também alguns Mundos Desportivos, que mesmo tratando-se de jornais atrasados, eu devorava de fio a pavio. Na oficina do Tio Manuel Preto, um sapateiro discreto, que só temia que as futeboladas na Rua lhe partissem algum vidro, li algumas vezes O Século.
    Na oficina do Tio Sebastião “Palhaço”, creio que a decoração era dominada por uma gravura que representava talvez o Rei Jorge v. Porém estes espaços tinham magia e poucos talvez se recordem, que talvez uma das primeiras séries da RTP, a preto e branco, em episódios semanais, terá sido “ O Senhor Que Se Segue”, que revelou publicamente um actor chamado Camilo de Oliveira a contracenar com Artur Agostinho, dois barbeiros, no décor de uma barbearia.
    E mesmo hoje, quando na moda estão os salões unisexo, A Bola, na sua última página, apresenta sob a forma de cartoon, em 3 pequenos quadros, um comentário desportivo humorístico, sob o título “Barba e Cabelo”.
    E embora acerca de Sapateiros e Barbeiros, muito mais houvesse a dizer, hoje fico por aqui.
    MC

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  2. Barbeiros e Sapateiros

    No meu comentário anterior fui talvez excessivamente minimalista, temia ultrapassar o nº de caracteres disponíveis, a descrever o cenário destes locais.
    Na literatura disponível para os fregueses, constava normalmente O Seringador ou o Borda d´Água, um calendário com a Nª Srª da Conceição no frontispício, e algumas molduras com as fotos do Benfica ou do Sporting, talvez um galhardete dos mesmos, já que naqueles tempos ganhavam quase sempre e os “andrades” ainda não passavam para cá da portagem dos Carvalhos.
    Havia no entanto uma oficina de sapateiro em que o dia-a-dia era uma festa!
    Em frente à Sacristia da Igreja, nos Pretos, o patriarca de nome Manuel, com vários filhos um tanto arredios à aprendizagem da arte, não economizava nos epítetos com que os mimoseava, e ali os dias eram animados!
    E por aqui me fico!
    MC

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  3. Um Barbeiro “sui generis”…

    Quase a meio da década de 80, vim para Abrantes, e um dos primeiros problemas que se me colocou, foi encontrar barbearia e barbeiro.
    E lá me indicaram um no Rossio, quase paredes meias com a Residencial Vera Cruz, onde o CDA quando andava pelos nacionais almoçava, sempre que vinha para o Ribatejo, um “faia” de bata branca e bigode aparado, que interrompia o serviço, de máquina e pente na mão, quando em frente da sua porta envidraçada, passava uma “geitosa” à qual muitas vezes não resistia dirigir um piropo. Ligeiro, normalmente.
    E o cliente, na cadeira, esperava!
    Ou então eram os conhecedores da sua costela sportinguista, que não resistiam a entreabrir a porta, e a dirigir-lhe um piropo desmoralizador.
    Claro que mandavam as “bocas” e seguiam céleres, mas o barbeiro não se continha e não resistia a vir à porta a responder à letra!
    E o cliente na cadeira, esperava!
    Com um barbeiro com este perfil, cortar o cabelo naquela barbearia era uma festa!
    O protagonista tinha o curioso epíteto de “OLARILAS”!
    E donde surgira tal epíteto?
    Alarvote, como já se deu a perceber, gostava de dirigir uns piropos a uma vendedora de fruta, que vinha do Pego ao Rossio.
    Tantas vezes o cântaro vai à fonte,… esta queixou-se ao marido, e um dia este mete os pés ao caminho, entreabre a porta da barbearia do artista e pergunta, < você é que é o barbeiro do Rossio? >, ao que o interpelado, pensando vir ali um novo cliente, responde afirmativa e sorridente, !
    < Pois eu, sou o homem da mulher da fruta >, e afinfa-lhe um murro que o deixou de cara à banda!
    E OLARILAS, ficou para sempre o seu cognome!
    Amigo de aventuras a desoras, normalmente com saias de permeio, adoeceu e morreu cedo, vítima de um cancro, dos que não perdoam.
    Mas quando oiço falar de Barbeiros, recordo-me sempre dele, de quem só conhecia o primeiro nome, Zé, que cortava bem o cabelo e sugeria, -quando quiser cortar, avise, e eu telefono para a VG, venha agora que tem vez - e assim sucedeu algumas vezes.
    Porque a freguesia acudia quase toda depois do trabalho e cheguei a sair de lá quase às nove da noite!
    Já morreu seguramente há cerca de meia dúzia de anos, mas ainda hoje, OLARILAS, é com toda a certeza, um nome que Abrantes e arredores não esqueceram!
    Experimentem sair um dia da A23 e perguntem em Abrantes, quem foi o OLARILAS!
    Não tinha nada a ver com Alcains, mas falávamos do CDA, que muitas vezes, como já acima referi, por ali parava…
    Duvido que Alcains tenha tido alguma vez um Barbeiro com este perfil!
    MC

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  4. Um Barbeiro "sui generis"...

    Por causas que desconheço, desapareceu do texto
    anterior, a resposta do "faia" ao < marido da
    mulher da fruta >, quando este foi ao Rossio pedir explicações, e à pergunta do dito,< você
    é que é o barbeiro do Rossio >, a sua resposta
    optimista, foi < OLARILAS >.
    O resto está tudo certo e creio que o texto fica mais claro, com a inserção deste detalhe.
    MC

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  5. Até aos 13 anos (nasci e) vivi numa aldeia grande do Alentejo, sede duma freguesia rural com cerca de 10.000 Hab.Virada sobre si própria,como as outras, dali quase se não saía e apenas chegavam a camioneta da carreira e algum caixeiro-viajante.Como curiosidades para os que chegavam, apenas dispunha dos casos e anedotas que contávamos uns dos outros e o filho de um sapateiro que, muito antes de saber ler, já identificava apenas pelas botas, com as legendas e o resto do corpo tapados, o jogador presente no "boneco da bola" desenrolado do rebuçado de caramelo pago a tostão.Por isso quase se tornou um mito.Filho de sapateiro, se não doutor...
    O meu pai "também" era sapateiro, de entre os mais de 50 que nessa altura trabalhavam dispersos por várias oficinas (lembro 5) e em trabalho individual.Nos meus familiares próximos conto 8 na altura.Numa actividade em que o fiado era padrão, o início dum(a) jovem na ceifa marcava o seu "direito" a andar calçado. Levava para pagar quando recebesse, se possível fosse.
    A minha vida era pouco mais que os sapatos e os sapateiros, o Atlético, os burros do meu avô, os ninhos e os seus proprietários,o peixe no pote da água das chuvas,os cogumelos quando era tempo...parecia não haver mais mundo para lá daquele, não fora o Benfica não estar ali à mão.
    Por tudo isto, porque o meu mundo era pequeno, cá dentro sempre guardei que o mundo dos sapatos que eu conheci, a sua terminologia, os seus hábitos, pouco passaria daquelas fronteiras.Mesmo abrindo um pouco o espírito, no País daquele tempo certamente pouco teria de comum com o da Beira Baixa.Confesso que fiquei estupefacto com o que escreveste e li.Estes são os termos e as coisas da minha vida.Num conteúdo tão extenso e rico, são de somenos importância as ausências dos abundantes calos que se dizia por ali que estes oficiais teriam ao fundo das costas,do avental, dos manículos, do cerol ("sarol", mais grosseiro que a cera, creio que feito a partir de pêz louro derretido e se usava para passar na linha usada no calçado do campo), das cardas,utilizadas para revestir as solas do calçado, sobretudo e ainda do campo (e que eu tanto gostava de pôr no assento da cadeira do Mestre Matias Carreto, com idade para ser meu avô e que tão meu amigo era!), e da cola feita da farinha de trigo, que eu aproveitava para colar os "bonecos da bola" na respectiva caderneta, outra paixão.As linhas passadas a cerol fizeram as minhas delícias de pescador dos 6 aos 11 anos.Relativamente impermeabilizadas, utilizava-as para ligar a ponta da cana ao bocado de cortiça que servia de bóia.A angústia era depois arranjar uns tostões para comprar um metro de fio de nylon para ligar a bóia ao anzol.
    Na complexidade que era garantir a subsistência, tudo era linear e simples. Por isso, quando partimos para 46 km de distância, nos despedimos uns dos outros em pranto e como se o nosso mundo fosse acabar. Assim o adivinhávamos, assim foi;apenas desconhecíamos os danos colaterais, ainda que os pressentíssemos.
    Sobrevivemos...sobrevivi...fui encontrando pessoas boas, como tu, que, independentemente da sua maior ou menor presença física, passaram a fazer parte da minha (outra) vida.
    Parabéns pelo rigor do texto.E obrigado!Obrigado pelas recordações dos pregos que endireitei,dos brinquedos simples que me ajudaram a fazer, das duras sovas que levei, pois a tábua da lixa era o instrumento preferencial da minha mãe nas grandes ocasiões (algo que ainda hoje lhe cobro, bricando, obviamente). Gostei tanto!Foi bom lembrar algumas adivinhas que bem conheço, as palavras de sete mil e quinhentos,até "as velas acesas" que hoje parecem quase definitivamente apagadas...Gostei tanto que fiz este exagero de comentário. As minhas desculpas.
    Um anónimo de nome José Vasques, o nome que aquele mundo lhe deu.

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