Páginas

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Maria de Lurdes da Paixão

[28-01-1925 ; 28-01-2017]


Cheguei de véspera para festejar os teus anos, 92 por sinal, mas tu desta vez não quiseste soprar as velas. Resolveste partir, deixando a tristeza de quem tem de abandonar um pedaço de si mesmo, as memórias de uma vida e um bolo que ninguém tem vontade de comer.

É da rua José dos Reis Dias que guardo as primeiras lembranças da minha avó, mas a tua história, ao contrário da minha, é bem mais antiga, de 92 anos e da rua do degredo, na parte velha de Alcains.Foste criada em teto pobre e humilde. Foste Mãe e irmã quando apenas tinhas idade para ser criança. Cresceste rápido e ao ritmo da necessidade que o destino te impôs.

Foste professora dos colegas da escola e contigo parte uma tabuada que ainda ontem respondias sempre com destreza e a certeza da resposta correta.Se a tua infância não te proporcionou tudo o que por direito deveríamos ter na vida, na minha foste uma presença constante. Contigo aprendi a respeitar o próximo, a ser educado e a dizer sempre a verdade. Foi no quarto onde também o meu Pai dormiu que me ensinaste a dobrar meticulosamente a roupa e a arrumar o quarto todas as noites, aprendendo o método e a disciplina que ainda hoje se reflete na organização pela qual pauto o meu dia-a-dia.

Para sempre recordarei as manhãs frias de  inverno antes de ir para a escola, aquecidas com uma torrada feita nas brasas do lume já aceso pelo avô e pela caneca de leite que fumegava de quente. Depois de impecavelmente penteado, risco ao lado milimetricamente traçado e após um beijo de bom dia, por diversas vezes quando descia as escadas a caminho da escola, antes de chegar ao pátio do primeiro lanço já tu me avisavas que a mochila tinha ficado esquecida!

Uma mochila repleta com as bases da educação de uma vida, cheia de contas feitas elas próprias vezes sem conta, seguida da maldita prova dos 9 e da temida prova real, de uma tabuada que obrigavas a ter na ponta da língua, por vezes à força do dedal da costura e de letras que tinham de ser mais bonitas que algumas obras de arte e mais direitas que a própria linha do caderno...

De regresso, depois de bater à campainha num toque que dizias já conhecer de cor, seguido de um espreitadela pela caixa do correio, aparecias à janela e mandavas a chave. Assim que abria a porta percebia logo o cheiro inesquecível dos bifes com as batatas fritas. Qual perfume francês...

Estiveste ao meu lado nos sacramentos da minha vida. Madrinha no Batismo, na primeira comunhão, no casamento e por isso, com muita nostalgia estou no último da tua, orgulhoso de ti e do que representas para mim.Fecha-se assim um ciclo e por isso afirmo: Pai, Mãe, os avós agora são vocês, e que belo estatuto este! Somos todos abençoados e alvo de muita sorte em contar com a tua presença Avó, até aos 92 anos. Enquanto escrevia esta memória, madrugada dentro na noite passada, ao meu lado na cama o Tomás dormia tranquilamente. No quarto ao lado estão o Diogo e o Tiago. Espero que guardem na memória um pouco de ti, fazendo a história deles também mais rica!

Uma das frases que guardo como tuas rezava 'Mãos que não dais, de que esperais?'

A última notinha que deu aos netos e bisnetos, já em idade muito avançada, quando o meu pai lha pôs na mão, olhou para ele e inocentemente perguntou se era para ela... Sorrimos todos na altura enquanto ao seu lado o bisneto Tiago olhava para ela surpreendido. Quando agora olho para trás e lembro todos os momentos e a pessoa que foste, penso que teremos ficado em dívida com algumas notas, que por maiores que fossem nunca pagariam a mãe, a avó e a bisavô que foste.

Paixaneta, partes agora para junto do Zé que a esta hora já deve ter o lume aceso e a mesa posta com o prato da sopa quente em cima. Leva contigo as nossas saudades e junto dele descansa em paz, olhando por nós.

Como sempre me ensinaste, é nas coisas mais simples em que se encontram as verdadeiras riquezas. Por isso hoje sou eu, em teu nome e em tua memória, que em jeito de eterno agradecimento te declamo um dos poemas que contigo aprendi. 


***

"Se soubessem como eu gosto
Da minha santa Avózinha
No mundo não há aposto
Uma Avó igual a minha
 --
Faz-me todas as vontades
Satisfaz os meus desejos
Perdoa as minhas maldades
E ainda me dá beijos
 --
E quando estive doente
Foi ela a minha enfermeira
Carinhosa e diligente
Junto à minha cabeceira
 --
E se eu às vezes a via
Muito triste a meditar
Olhava para mim e sorria
Mas não deixava de chorar
 --
Com tantas lágrimas no rosto
De pele ‘engelhadinha’
No mundo não há aposto
Uma Avó como está minha"

***

Obrigado Avó por teres sido exigente.
Obrigado por me lembrares da mochila.
Obrigado pelos pobres coitados dos passarinhos.
Obrigado por me teres ajudado a ser quem sou.
Leva um beijo de todos nós, filho, nora, netos e bisnetos ao Avô e até sempre.

Miguel