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quarta-feira, 8 de outubro de 2014

António “Damas”, partiu um HOMEM bom


Contra a vontade da família, chamavam-no, chamaram-no... e, “deslavadinhos”, ele que não sabia dizer não aos amigos, tanto insistiram que partiu.
Recentemente, e quando o visitava levando-lhe de presente da minha horta umas “abêbras pardas”, ouvia por ali umas frequências de segunda harmónica, uns silvos recebidos no aparelho colocado por detrás da orelha, que ele lá do alto recebia e bem disfarçava, nos trémulos lábios de um esgar de sorriso entre alegria e tristeza, assim como quem diz, nem sei se “hei” de ir ou se “hei” de ficar.. 
Sem nada dizer à sua extremosa irmã, a Menina Ilda, muito menos aos sobrinhos, o “João Tchaplêr” andava por ali, dizia para os meus parcos botões, estão a chamá-lo!!! 

E aquela frequência se não é a do Porfírio Isidro, é de certeza do Ti Domingos Barata.


Aboletados lá em cima no “Lua e Sol”, presumo que lhe terão dito, vem cá para cima António, que aqui estamos bem, a cama é boa e nem sequer há dores nas costas, e “as mesas do lagar”, à tua espera, já estão postas!
E, a custo, e mesmo muito triste, partiu.. 
Foram 88 anos de vida boa, não de boa vida, a somar e a semear lhana amizade entre damas e valetes, uns, poucos, de bengala ainda por cá, outros, cada vez mais por lá, mas a todos se tornava e torna, cá e lá, mais difícil viver sem a presença do “Rei da Amizade”.
Amizade que  vi crescer algumas vezes onde pensava impossível florir, pois nem sempre um agricultor encontra “terra de boa funda”, mas, ele que sabia escolher a “leira”, e malhar pão na “eira”, formado que foi na “Universidade da Vida”,  cedo aprendeu e mais tarde ensinou, como na “ Ultreia “, que só colhe quem semeia.


Quando o poeta cantou, “Venham mais cinco“, já ele dizia, para o meu lagar, venham cinquenta...  e era assim que na rua dos “Asseprestes“, se celebravam não um, mas Todos os Santos. A palavra inclusão, por ironia, só apareceu muito tarde com a democracia.
Naquela mesa do lagar, sobreaquecida em amizade, por vezes também em ebulição com a discussão, com enorme lareira sem “pilheira nem palameira”, foi o ponto de encontro de uma plêiade de amigos que sob o afetuoso olhar  do António Damas, ali confraternizavam cimentando uma amizade que se estendeu a muita, mesmo muita gente.
De todos os quadrantes, pastores, alguns senhores e parcos doutores.
O Porfírio Isidro era uma espécie de dona de casa, era ele que punha a mesa, tendo o cuidado de por como toalha uma acastanhada folha de papel de saca de farelo. O ti Domingos Barata, com chapéu às três quartas, ficava na grelha, o Ti João Batista em política  discutia sempre naquela Casa, a eterna questão do Povo, enquanto, ufano,  o Fernando Brás então de autocolante ao peito, exibia para ele, João Batista,  o partido da pata da galinha. Sentado, o Ti Zé Amaro “Gordo”, partia queijo com a sua navalhinha.
De rompante, chegava sempre o David Infante, anunciando bomba, cacha jornalística  ouvida, que no Reconquista iria ser vertida.


Ali pelo meu “meio quarteirão” de anos, recordo um ensinamento que não mais esqueci, e que devo ao meu amigo “Tiantónho Damas”. Naquela altura, tinham os meus pais, e mantemos na Retorta, uma horta, que pegava com uma propriedade do Sr. Emídio Beirão que o António Damas tinha de arrendamento. Nessa propriedade havia um pessegueiro que dava uns saborosíssimos pêssegos de roer, que amaduravam por esta altura, de polpa semi-mole, e com o caroço vermelho escuro, de cor tipo “gactho da índia”.
De chapéu casaco e colete em pose de aprimorado maioral, “cavalgando sempre esbeltas bestas“, chegava ao fim da tarde para a rega do petolhal e do melancial. Ao portal chamava-me, óh Manel toma aqui uns pêssegos, que eu alegremente recolhia.
Engatava a besta e punha o engenho, a nora, a trabalhar para a tapada regar.
A minha mãe e duas primas “cartaxas”, estavam de volta de alguidar de barro vidrado, comendo miga fria, enquanto a roupa “córava”, presumo que envergonhada dos encardidos na farrapada. Queixavam-se entretanto que a nora fazia muito barulho e que chiava que se fartava.


Com a confiança própria da canalha, fui ao portal e perguntei-lhe.
- Óh Tiantónho, porque é que não põe óleo na sua nora?  É que ela “tchia”, tanto!
Falando alto para que a minha mãe ouvisse, respondeu.
Óh Manel, as noras, por mais óleo que se lhes deite, “tchiam” sempre. 
A minha mãe, que naqueles tempos ainda não tinha nora, tirava a água do poço com uma bomba aspirante-premente, e percebendo a canelada de luva branca que acabavam de ouvir, não se “atangantou”, e replicou.
Óh senhor António, não esteja a ensinar essas malandrices ao “catchopinho”.. 
Anos mais tarde, e previdente, para não ter de ouvir o chiar das noras, decidiu o meu pai, comprar um motor de rega só a gasolina que ainda hoje uso, pega bem, e não tem “tchiadeiras”.
Enrolado entretanto entre homónimas, homófonas e até homógrafas, fui crescendo, tendo sempre por perto a presença moral deste amigo que partiu.
Na carrinha que ele conduzia, descendo a rua onde moro à “conta do Salazar”, tantas vezes fiz de GNR para o autuar, mas ele teve sempre na vida os documentos da amizade da moral e da vergonha na cara, em dia.


A vida é isto, é o que por cá deixamos, não o que temos, mas a lembrança que na família e nos amigos, fica.
Obrigado Ti António pela grande herança, os seus valores, que me deixou. Morrerá para mim quando de si me esquecer, espero que nunca.

Manuel Peralta

Nota. Escrevi este texto logo que este meu amigo partiu. Por duas vezes solicitei ao Reconquista a sua publicação, uma vez que na enorme diáspora Alcainense, poucos serão os que não conheceram o “tiantóniodamas”.
Pacientemente aguardo.

1 comentário:

  1. Uma expressiva evocação da memória de um alcainense que agricultor, adubou como poucos, o valor da palavra Amizade...Assim a diáspora alcainense o recordará...

    Zé MC

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