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sábado, 11 de agosto de 2012

Morreu a Dona AMÁLIA, a minha professora


Espreitando ao canto do recreio, debaixo de frondosa mimoseira, exclamava triste o Zé Belo, o Carocha! Já lá vem o carrão, um Austin preto que transportava para a escola os professores que, diariamente, apareciam sempre na curva da quinta do pai do Manel Vaquinhas, o Ti Joaquim Rosa.
Descalços, uns, de bota ou sapatas, outros, sempre a pé, de bolsa de sarapilheira ou mala de cartão às costas, subíamos a barreira da pedreira, parecendo ninhos de pardais à solta, putos...
O Zé Pio, havia entretanto feito a maquia de botões, bostas, e, até por vezes um arrebolim, tirado de pirolito deixado cair por manha na taberna do Ti Requeita.


A minha “pedra”, ardósia que religiosamente guardo, e que me acompanhou da 1ª à 4ª classe.

Outros pagavam o tributo, o bulling daqueles tempos, em sarroadas de penas que brotavam em recreio areado, não relvado...
Sílvio Baltazar, Luis Manel, Abel Beirão, Carlos Paixão e o menino Ruizinho, que tinha tudo menos cantinho,  acabavam de jogar o cinco cantinhos, um, cinco cantinhos, dois, cinco cantinhos, três, cinco cantinhos, quatro, cinco cantinhos, cinco, e, face ao alarme todos se encaminhavam para a sala de aulas.
Quando a Dona Amália entrava na sala, todos estavam nos seus lugares, e em uníssono e de pé, diziam... bom dia senhora professora.
Bom dia e podem sentar-se, repetia.


Termo de passagem da 1ª para a 2ª classe, assinado pela Dona Amália, com letra inconfundível.

Pedra com as contas e as reduções, caderno das cópias, redação, palavras difíceis, tabuada...
Leituras, pronúncia, dicção, pontuação, exclamação, toda uma parafernália de limitações de sinalização de tráfego leitural, que com esforço, todos aprendíamos a caminhar prevenindo acidentes no trânsito das leituras.
Ler bem e respeitar a pontuação, mostra que sabe a lição...
Correção dos trabalhos de casa, uma reguada aqui, meia dúzia ali, e agora já com as mãos quentes, podíamos então, fazer o ditado.
Erros mil, emendar e repetir a palavra, para fixar, e não voltar a errar. Tocava a campainha e era o recreio da manhã. A casa de banho era o universo, e todos, de pila ao alto, competíamos para ver quem mandava o chi-chi mais longe, e, mais alto...próstata se havia não se sabia, porque o mapa do corpo humano não se dava nesse ano.
Jogar às quédas, ao eixo ribaldeixo caramelo ao pé do eixo, ao salto de cavalo e jogar, jogar, à bola.
A maioria descalços...
Mais que suados, transpirados, embezerrados, com tristeza recolhíamos ao castigo, esgalamidos, agora para as reduções, dos metros a milímetros, do estere ao decaestére, do are ao centiare, do hectolitro ao mililitro, do metro cúbico ao centímetro cúbico e do hectograma ao centigrama.
Descalço, o João Bola, saía, libertava-se a meio deste tempo, para ir buscar o almoço para a Dona Amália e para o Professor Pires, Rufino.
Que inveja... todos os dias...


Apagador do quadro, tribunal, palco de alegrias e tristezas...

Sempre a correr, descíamos a barreira da pedreira, subíamos com igual destreza a das pedras do sal, e em casa, depressa se batia um prato de sopa e umas batatas fritas com ovos cozinhados, fritos ou estrelados.
Ainda a clara afastava a gema e já o António Clemente trocava bilhetes, cromos de futebol, que havia colado em caderneta com cola de ginjeira...
De tarde o Professor Pires na aritmética, nos problemas, de uma e duas contas, nas medições, na numeração romana, nos números pares e ímpares, no dividir metros por metros e escudos por escudos, os decimais, e os inteiros... as reduções e as frações...
Rebuçado na secretária, prémio, linhas de caminho de ferro, ramais, rios, afluentes da margem direita e da esquerda... Erges, Ponsul, Ocreza, Zêzere, Alviela, Maior e Trancão, do Tejo, e da Beira Baixa, Abrantes, Castelo Branco, Alcains, Fundão, Covilhã e Guarda.


Ponteiros (penas), pau de giz, caneta de marca ERRO, já de tinta permanente marca KINK, e caneta de pau, algo moderna...

Capitais, reis e reinados, da primeira à enésima dinastia, passando pelo Interregno, domínio dos Filipes, da restauração, do Lavrador, do Bolonhês, do de Boa Memória, do Príncipe Perfeito, do Bravo da batalha do Salado, do Magnânimo, do Africano, cognomes que a memória regista como galo em crista.
Do Zé Pedro Amoroso, Pedro Vilar, do António Bola até ao Zé Artilheiro, que tirava o chapéu ao Cândido e lia Candido, ah, seu bandido... exclamava o Professor Pires, corrigindo a leitura de Cândido, aluno mandrião em cama de leito de ferro, já são horas e todos os meninos estão na escola.
Ou da Rita, vem ver a seara, que é igual ao verde da saia da tua menina... ou da Joana a Tonta, que se lia de ponta a ponta.
O Professor Pires e a Dona Maria Amália Morão Carrega Rufino, despertaram-me para a vida e com eles aprendi que, a vida é, para as pessoas normais, noventa por cento de transpiração e dez por cento de inspiração.
Estudar, aprender, dá mesmo muito trabalho a quem aprende e também a quem ensina. A escola “feliz” de hoje, fará mais infelizes, amanhã.
Com o exemplo da sua pontualidade, da disciplina, do seu acrisolado trabalho, no empenho, no orgulho em levar os alunos a exame e todos passarem.


Diploma da 4ª classe, com o Lusito da Mocidade Portuguesa, em baixo... nada contra Nação, tudo pela  Nação. Poderá hoje ler-se ao contrário?

Levei algumas reguadas, mas antes esta punição pelo erro do que, o deixa andar, ele ainda é tão novinho, irá como os outros, tem tempo... e como ele passa!!!
Olhar os professores daquele tempo com os olhos de hoje sem contar até três, só demonstra que não se aprendeu nada, e isso é que é grave.
Escrevo este texto, no dia do funeral da minha saudosa professora, Dona Amália, funeral em que, acompanhado pelo Abel Beirão e pelo João Bola e, em passo de funeral, demos a nossa “volta”, cantámos... Já chegou o nosso dia, o dia da prova escrita, viva a nossa professora, que é a melhor e mais bonita. Viva.
Muito obrigado Professores Pires e Dona Amália, este eterno aluno, agradecido.

Manuel Peralta

Nota: O Reconquista de 9 de Agosto publicou o artigo acima transcrito e acabei por digitalizar o recorte do jornal para ficar registado para memória futura.



Porque este tema não está esgotado, e a família Morão Correia, Rufino, Carrega tiveram em Alcains uma existência notável, penso voltar a escrever algo sobre alguns detalhes da vida desta família.
Para tal vou servir-me de auxiliar de memória, de um livro, que gentilmente me foi oferecido pelo filho mais novo da Dona Amália, Zé Rufino de seu nome, do qual mostro a respetiva capa.



Trata-se de um livro de poemas da Dona Albertina, mãe da Dona Amália Morão Carrega Rufino.

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