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domingo, 27 de junho de 2010

Amigos que partiram cedo...

Abro aqui numa prometida tapada leiras de terra fértil, relativa a amigos que partiram cedo... em viagem... para o outro lado da margem...
Estou aos poucos junto de familiares a recolher mais informação, baseando os primeiros casos em testemunhos por mim escritos no Reconquista e que ficarão agora aqui registados na terra que foi deles e que por enquanto ainda é nossa.
Claro que conto com os comentários sobre as pessoas em questão, pois em terra pequena todos nos conhecemos, brincámos, bulhámos, por vezes colegas de carteira na escola (meu nheira), a uns pusémos cuspinho na orelha, a outros passámos rasteira, fizémos serenatas, bebemos uns copos, em procissões com ópa ou em Mafra na tropa, em acampamentos, em cursos de noivos, nos teatros, companheiros na bicicleta, nas idas à marôva, nas futeboladas, nos passeios com o sr.Vigário à fonte da fome em Alpedrinha, nos medíocres, nos bons, no liceu ou na escola técnica, na camioneta dos estudantes, na boleia, nos bailes na associação e nos particulares no gira discos do Alírio e do Joaquim Ramalho (vulgo Rabeca), no tracôma, na tinha, na volta da 4ª classe, na pedreira, na oficina, na guerra colonial...

Começo então pelo:

Elias Pereira de Jesus


Nasceu na terra deles e faleceu com 54 anos em Fevereiro de 2001.
Filho de Amândio do Nascimento de Jesus e de Maria da Luz Pereira, tinha 6 irmãos.
Casado com Ana de Jesus Rodrigues Leão teve um filho, Pedro Miguel Leão de Jesus.
Exerceu a profissão de bancário.

Relembrando o ELIAS

Com uma lágrimazinha no canto do olho... esquerdo, morreu o Elias Pereira de Jesus, assim o disse o seu irmão Padre Álvaro Pereira de Jesus, na cerimónia fúnebre na sua igreja matriz.
Tive a rara felicidade de conviver de muito perto com o já saudoso Elias, até aos vite anos de idade - seminarista, escuteiro, declamador, artista de teatro, apaixonado.
Dividido entre a emoção e a razão, era doloroso vê-lo diáriamente abandonar o jogo da bola ou o ferro quente no auge, para ir ter, contrariado, com o Monsenhor ao Seminário para ajudar à missa, isto em férias.
Nas procissões de batina e chapéu preto, via-o incensar mais as moças que o santo padroeiro que se festejava.
Claro que um rapaz destes que, como diz o meu pai, não era pássaro de gaiola e a sua libertação adivinhava-se.
No escutismo chegou a ser chefe de escuteiros ao mesmo tempo que a Vitória Chagas, chefe de lobitos.
As patrulhas do Elias eram sempre as que gritavam mais alto, as mais indisciplinadas, as últimas a formar, mas as primeiras a ajudar escuteiros em dificuldades.
Uma vez no Teixoso, já o Elias com dezasseis anos, num fogo de conselho, emocionou a assitência depois de ter declamado o Cântico Negro de José Régio.
Houve por ali piscadela de olho de moça, e o Elias chegou tarde à tenda.Com o escuteiro sempre alerta levou com o pau na cabeça - nada disse, mas a partir dali foi um mártir em confissões e penitências.
Com aprovação e distinção fez um curso de noivos e em curso orientado pelo irmão Padre Álvaro, foi também aos Dominiques - era assim o Elias ia a todas, para ele o impossível era não tentar, vindo de lá sempre pronto a praticar o que aprendera.
Desta vez com os Dominiques percebi melhor o Elias... emoção ao máximo, razão ao mínimo.
Bancário que foi, posso afirmar que se pudesse bania a palavra crédito, pois com ele não haveria crédito mal parado e daria a sua camisa a quem dela necessitasse - um burrena - como se diz nesta terra de pedreiros livres e muita costura.
Na tropa pediu dispensa ao comandante para vir trabalhar para a sua/nossa papelaria e aparece como delegado da oposição ao regime numa assembleia de voto.
Valeu-lhe São Álvaro de uma mais que certa mobilização para a guerra colonial.
No palco aliava a qualidade do gesto à voz bem colocada e o salão da Casa do Povo arrepiava-se e chorava com a sua interpretação no drama - matei o meu filho.
Era no entanto no palco da emoções que o Elias se transfigurava. As zonas não anestesiadas dos personagens que encarnou, causavam dor na assistência que o Elias tanto apreciava nos bastidores e nos petiscos, a comer talhadas de queijo fresco e chouriça assada.
Com ele, com a minha viola e a guitarra do Félix, tocámos as serenatas na luarenta rua do Degrêdo à sua Ana em poemas por si escritos.
Teu nome Ana, vou recordar, teu nome Ana, e o teu olhar... junto de ti, quero viver... que nós adaptávamos aos nomes das nossas namoradas.
Hoje, enquanto alinhava estas memórias percebi porquê é que sempre me tratou por Manuel da Paixão.
É que a paixão é prima direita da emoção e é muito difícil viverem sós.
Bem de quem morre e não nos deixa indiferentes.
Obrigado Elias, foi muito bom ter-te no nosso acampamento.

Manuel Peralta

Texto publicado no Reconquista em FEV/2001

3 comentários:

  1. Quando os 60,s se vão - ELIAS - a saudade de nós mesmos… (1ª parte)
    - texto publicado na Reconquista, quando do seu desaparecimento, e agora revisto.

    Porque o texto inicial ultrapassava os 4086 characteres, dividirei em duas partes
    este texto.

    " Tinha já alinhavado este texto quando li o que M.Peralta escreveu sobre ti.

    No entanto, eu que nunca fui escuteiro, nem mesmo "anti", talvez possa complementar circunstâncias e tempos, vivências que nos finais dos anos 60, nos juntaram nos Teatros, e na política de então, um tema tabu, proibido mesmo, sempre que na contra-corrente.

    Relativamente ao Teatro, uma tradição que esta terra felizmente não perdeu, estivemos na equipa, grupo dir-se-ia hoje, que inaugurou o palco da Casa do Povo, com o cenário, um telão com vários metros, a ser pintado na JOC e a ser transportado às costas, a um domingo, depois da missa, claro, até à Casa do Povo,
    onde quem mandava era o João Baptista, e com quem o diálogo nem sempre era fácil.

    Da avaliação que então fazíamos relativamente à geração que nos antecedera a fazer Teatro, e de que alguns de nós se recordavam; peças como o Frei Luís de Sousa e outras, e que eras tu o primeiro a assumir, estariam já perfeitamente ao alcance dos nossos 19/20 anos. O Advogado da Honra, terá porventura sido a prova de que estavas certo nas tuas convicções e que o contraste, logicamente sem desprimor para quem nos antecedera, não nos era desfavorável e era o resultado de vivências e cultura a que a geração anterior não tivera acesso.

    Recordo também a inconsciência de um improviso total em palco, como suporte a uma peça que um grupo de Castelo Branco trouxera à JOC.

    Homem de ir a todas, recordo as tuas coloridas descrições no regresso de um mergulho no Porto "by Night", a nós que da noite, apenas conhecíamos os bailes da Associação ou as directas a que por vezes o estudo nos obrigava."

    E assim concluo a 1º parte. MC

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  2. Elias - ou a saudade de nós mesmos - 2ª parte

    São porém nítidas as recordações, e já lá vão mais de 30 anos, porque isto passava-se em 69,
    quando de balde de cola e escadote às costas, andámos pelas ruas desta terra a colar as fotografias dos "perigosos agitadores" que eram Manuel João Vieira, Alçada Baptista, Domingos Megre e José Rabaça, que eram as faces visíveis da oposição democrática no distrito, a concorrerem às Legislativas de
    então.

    E tu, que já eras militar e com uma invejável especialidade de secretaria, arriscaste
    mobilizando dezenas de alcainenses que foram ao comício da mesma oposição a Castelo Branco, de onde muitos politicamente indiferentes, regressaram pouco menos que aturdidos, com as palavras e a atitude daqueles homens de bem, que no palco do Cine - Teatro Avenida, diziam palavras e citavam exemplos dos quais nunca tinham ouvido falar, censura "dixit".

    De como o expansivo ti Zé Lopes "cabrazana" diria no regresso,"o que ali ouvi,poderia ser dito no altar de uma igreja," tal o impacto que nele tinham provocado as palavras e a presença de Alçada Baptista.

    E a tentativa, tentaste mesmo, que a oposição viesse a Alcains fazer uma sessão de esclarecimento e foi impossível, o medo claro, arranjar um espaço para tal.

    Como espreitámos os cadernos eleitorais, e vimos no francês L´AURORE, de
    proibidíssima circulação, uma surrealista entrevista ao ditador já decrépito, em que na penumbra de São Bento, pensava e à sua volta encenava-se essa farsa, de que era ainda o detentor do poder, quando Marcello Caetano, já era 1º ministro havia um ano.

    Tu, corrias riscos que mais nenhum de nós ainda corria, porque estavas na tropa e
    o "prémio" poderia ser uma mais que previsível reclassificação de escriturário em
    atirador e ires malhar com os costados na guerra colonial. Ter-te-ão valido os
    santos Álvaro e Jesus... Correia, um major com quem eras aparentado, e tudo se terá resumido a uns dias de detenção, sem mais consequências.

    Tudo isto parece hoje um aflorar de coisas mesquinhas e quiçá até ridículas, mas quem viveu esses anos de brasa, sabe que era necessária muita coragem, paixão mesmo, para dar a cara, e tu estavas sempre pronto a dá-la.

    "Os Cucos são de paixões" sintetizava, o Ezequiel, e eras assim mesmo.

    Coimbra, Mafra, dois anos de Angola, tu foste para Lisboa, desencontraram-nos e creio que ao longo destes mais de 30 anos, nunca mais nos vimos.

    E foi necessário a uma 2ª feira, após um agitado fim-de-semana, que à noite ao folhear a Reconquista desse conta da tua passagem para a outra margem. Uma indescritível sensação de mal estar perturbou o meu sono nessa noite e como num "flash back",correram pelo meu espírito as imagens que aqui singelamente descrevo.

    Para toda a família uma palavra amiga de conforto, nestas palavras que são de muita
    saudade pelo Elias e também pela sua juventude, sonhos e aspirações, neles integrando os que hoje na casa dos cinquentas, já todos ( ou quase), os que com ele os vivemos, porque colectivos. Até sempre Amigo!

    MC / Abrantes 01/03/01

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  3. Encontrámos na NET, um excerto do blogue do Barnabé, relativo a materiais sobre o 25 de Abril nos Blogues, o texto seguinte:

    “O tio Elias!!! Militante do Partido Comunista, “ bom vivant” e sempre com uma piada provocatória na ponta da língua. Grande dinamizador das comissões democráticas eleitorais e grande “pichador” de paredes e afins. “Abaixo o regime. Viva a Liberdade” valeram-lhe ficha na Pide, várias noites a dormir de pé nos calabouços da esquadra de Alcains e um bilhete de ida para guerra. O Padre Álvaro, seu irmão e tio do João, safara-o sempre. Por descargo de consciência, dizia. Lembrava-se da frase que, segundo o seu pai, o tio Elias disse ao Tio Álvaro logo após o 25 de Abril: “ Olha agora sou eu que te posso safar. Não te preocupes e diz aos teus amigos para não se preocuparem. A liberdade é para todos, irmão” (Rodion)


    É inquestionável que o Elias era um homem de coragem num tempo em que não era fácil sê-lo! E gritava slogans contra o regime, eu assisti, normalmente em noites de passagem de ano!
    Que na mesma altura, em 69, com outros alcainenses, colámos cartazes da CEUD de Castelo Branco em Alcains, também é verdade!
    Que em 69, correu o risco de ser mobilizado para a Guerra Colonial, correndo riscos que nenhum de nós corria, também é verdade!
    Creio no entanto que existe por aqui um certo exagero, com o que se terá passado nos calabouços, supõe-se que da GNR de Alcains, quando se refere que passou ali várias noites a dormir de pé!
    Porém nada apouca a coragem física e moral do saudoso Elias, colocar em dúvida aquilo que alegadamente se terá passado nos calabouços da GNR de Alcains, mas talvez faça justiça à memória do Cabo Marques, que nunca poderá ser comparado a um Tinoco, Cunha Passo, Sacheti ou Rosa Casaco.
    MC

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