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domingo, 24 de julho de 2011

INSPECÇÃO MILITAR

“...e para beber,
não há manias.
Torna-se a encher,
na taberna do Tobias...“

...o garrafão, claro.
Assim diziam estrofes da cantiga que, a malta nascida em 1949, acompanhada de três acordeonistas, cantava pelas ruas de Alcains, quando da sua inspecção militar.


Era uma semana de festa, de borga, de folia... um dia para a ribeira, outro para a inspecção, outro para levantar guia.
Iam uns de 19 para 20, se tivessem nascido de Janeiro a Junho e, outros de 20 para 21, se nascessem de Julho a Dezembro.
Mas antes, meses antes, e no ano anterior à ida à inspecção tinham a responsabilidade de fazer a fogueira de Natal.


Era ali o primeiro encontro, depois da escola em que todos se juntavam, já homens feitos com as virtudes e os defeitos...
Naquele tempo era tudo feito à mão... assim me dizia a memória do Domingos Farias Bispo, também ele nascido em 1949, ciclista quase todo o ano e que corria muito mais que o Massano...
Não havia motosseras, trabalhava-se a machado no corte de carvalhos e a vinho, algum pão e latas de atum.
Em carros de bois e muito excepcionalmente de tractor, transportavam o enormes madeiros que aqueciam fiéis, em portas, camarinhas, patinhos e batoréis.


...entretanto, nos meses anteriores ao dia da inspecção, 24 de Junho, subindo a varandas e terraços como ases, às namoradas, roubavam vasos...
Na véspera do dia da inspecção, começava a higiene com banho na ribeira da Ocreza, na Ponte Pedrinha, pois tinha-se abandonado o Laréco, bastante cedo, por lá se ter afogado um mancebo.


Iam a pé.
As bicicletas eram luxo.
Automóveis dois ou três em Alcains.
Acompanhados pelos acordeonistas e de toalha ao pescoço, cantavam a marcha da inspecção que o acordeonista principal havia composto com a respectiva letra.
Uns em cuecas, outros já de calção assim saltavam ou davam cambalhota... e assim saía eventual badalhoca.


De tarde, agora de táxi, iam para Castelo Branco levantar a guia... de marcha... sempre acompanhados pelos acordeonistas e de voz afinada e pandeireta na mão, davam largas à sua euforia, dançando e cantando de acordo com a idade pelas ruas da cidade.


Regressavam a Alcains, de guia na mão, dando de táxi voltas pelas ruas em ruído semi infernal de buzinas, pandeiretas e vozes atreitas.
No dia da inspecção, 24 de Junho, levantavam-se cedo pois a tarefa começava com o transporte dos vasos para o adro da igreja Matriz.
Entretanto e agora já de fato e sapatos novos, davam uma volta ao adro com os acordeonistas, entravam nos táxi e de vidros abertos acenando a amigos e familiares, partiam par a inspecção.
Por cá, no adro, era agora tempo de recuperar os vasos...


A inspecção militar decorria no quartel de Caçadores, hoje transformado em prisão, e consistia no seguinte.
Uma Junta médica militar observava os mancebos que, nus e em fila eram inspeccionados.
Peso, altura, maleitas ou doença, com observação da ferramenta.
Tiravam então “a sorte“.
O meu avô materno, Manuel da Paixão, que nasceu em 1893 dizia-me que tinha ido “às sortes“... queria dizer inspecção militar.
A sorte consistia em tirar de uma bolsa, um número que era o número mecanográfico e que nos identificava no serviço militar.


Perguntado ao mancebo a sua profissão, poderia por vezes vir a ser a especialidade na tropa. Dali se regressava de fita vermelha se apurado, de fita verde se esperado e de fita branca se livre.
Nesse dia almoçava-se em Castelo Branco regressando-se de táxi a Alcains onde se dava volta pelas ruas, com os acordeonistas, de pandeireta e fita na camisa, por vezes no chapéu ou até na bainha das calças para os que tendo ficado livres, ficavam livres de passear por todo o lado. Claro à frente sempre o garrafão, o palhinhas, de duas asas onde pegavam dois rapazes mais novos que serviam vinho aos que o bebiam.
Acertava-se ainda o dia do jantar da malta da inspecção, e marcava-se para o domingo seguinte o Baile da malta da inspecção.


Nesse ano, o baile foi na Casa do Povo, abrilhantado pelo então famoso conjunto os KAKOS de Vila Franca de Xira.
A partir de Janeiro do ano seguinte ia-se então para a tropa, numa das quatro chamadas trimestrais, a que correspondiam os quatro turnos de incorporação militar.
Assentar praça, recruta, especialidade, colocação em unidade e mobilizado para o Ultramar...


De memória cito uma cantiga da inspecção militar de 1959.
Era assim:

Chegou,
o dia,
da nossa inspecção.
A nossa alegria,
é o garrafão.

Nós vimos,
dizer,
A todos cá do fundo.
Que a nossa,
inspecção,
é a melhor do mundo.

Venha de lá o garrafão,
para que toda a gente prove.
O vinho da inspecção,
de 1959...

Lá, lá, lá... lá, lá, lá...

Pandeireta, acordeão, fita, vinho, garrafão, era assim a festa da inspecção.

Manuel Peralta

1 comentário:

  1. Inspecção militar...uma experiência em duplicado...

    Sim em duplicado, porque eu fui duas vezes chamado a esse dever cívico, como então se dizia.

    Em 1967, estava em Coimbra, que naqueles tempos, ficava muito longe, interromper as aulas, quase em tempos de exames finais, para vir a Castelo Branco, não dava geito nenhum...

    Optei, e graças a um Atestado Médico, que a saudosa DªVitória, do 132, me conseguiu desenrascar, vir como que em 2ª chamada, na companhia do Ezequiel, em finais de Julho, ou mesmo já Agosto, e fora dos festejos, que em colorida descrição, o “homem do leme” por aqui deixou...

    De Alcains, fomos os dois, mas havia mais candidadatos doutras proveniências.Em vez, do BCaç 6,onde decorria a época normal, vamos dizer assim, a função decorria no Edifício da Junta Distrital, no conhecido edifício dos emblemas.

    E decorria entre um corredor onde nos despíamos e uma sala, onde a uma secretária se sentavam creio que 3 membros. Fim de exames, desgastado, eu era quase “só pele e osso”. Vamos às medidas antropométricas e creio que para cerca de 1,70m eu pesava 46,5 Kg(!). Verdade. E eu vi na cara dos decisores, uma hesitação dos diabos, nos murmúrios que entre si trocavam...perante o quase esqueleto que na sua frente tinham...

    Estávamos no tempo em que a Guerra Colonial fervia, e eram raros os casos de quem escapava a um Apuramento e eu já vinha a contar com essa inevitabilidade...

    Porém, vestidos já, entregam ao Ezequiel uma fita Vermelha e a mim, uma fita Verde... Ainda terei perguntado ao militar que me entregou a dita, o que é que aquilo significava, e ele com uma cara de gozo terá respondido, “para o ano há mais”... Ficara Esperado!

    E desde esse momento, fiquei a pensar... Com uma “cunha” tinha-me safo!

    Regresso com o meu companheiro de jornada, o Ezequiel, e foi um dia absolutamente normal, num tempo em que sabia lá onde era o Algarve, ou sequer a Nazaré, entretido talvez com alguma peça de Teatro e a estudar para uma cadeira, que por opção, e conselho do Zkiel, já batido nestas coisas de 2ªs épocas, me aconselhara a deixar para Setembro. Medida acertada, diga-se...

    No ano seguinte, Coimbra continuava a ficar muito distante, e novamente na mesma época do ano anterior, graças de novo a um Atestado Médico que a incansável Dª Vitória me ajudou a desenrascar, no mesmo local em Castelo Branco, ai estava eu de novo, desta vez, só.

    Os exames tinham corrido bem, o peso estava ligeiramente acima,48 Kg, e o inevitável Apuramento seria a decisão natural. O COM em Mafra, passava a estar no meu horizonte. Indago o que devo fazer para manter os adiamentos até à conclusão do Curso, faltavam 2 anos, e aí vou de regresso a Alcains.

    Triste! Alegre, não!Conformado, será a palavra exacta.

    Isto é: todo o “folclore” que rodeava a ida às Sortes, que em tempos de guerra, mais propriamente se devia chamar para alguns, de “Azares”, e que eu até compreendia, passara-me completamente ao lado! Sei lá onde foram os Bailes, e quais os conjuntos, e as cenas dos Vasos, e mesmo dos Madeiros, são experiências que faltam no meu currículo. Tenho esta lacuna...

    Das tais que nem as Novas Oportunidades previram...

    E assim foi. E 2 anos depois,finais de Julho de 70, com o Curso despachado, aí estou à porta da EPI no Convento de Mafra, para iniciar cerca de 3 anos de outras vidas...

    Mas isto já são histórias que eu tenho dispersas pelo Panoramio, que talvez despertem alguma curiosidade... Para algum curioso, aqui fica de novo o link: www.panoramio.com/user/1804371

    Mas quem quiser rir um bocado com este tema da ida às Sortes, há um livro de Galopim de Carvalho, que o aborda de um modo hilariante...

    Ou então ouçam uma Canção do Rio Grande, na qual o Vitorino, conta a sua ida...Pelos vistos, não lhe acharam qualquer geito, canta ele, e terá ficado Livre.

    MC

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