Com que então de pinsórios, Ti Moisés... ataquei!!!
Óh Manel, assim não tenho que apertar o cinto... levei.
Óh Manel, assim não tenho que apertar o cinto... levei.
Muito lúcido, com memória ainda acordada aos 90 anos, o Ti Moisés nasceu em 25 de Junho de 1921, delfim de mais sete irmãos.
Nasceu órfão de pai, Joaquim Duarte Rafael e a mãe, Damiana da Conceição Barata, tinha o exclusivo do nome, pois foi a única mulher de nome Damiana que existiu em Alcains.
Com os professores José Miguel e Pereira, fez a quarta classe frequentando a escola em três edifícios, Lar Major Rato, casa da Dª Antónia Carrega e edifício da Junta da Freguesia.
Com 11 anos, e em terra de cegos que não viam o trabalho infantil, lá vai o franzino Moisés dar massa, amassada com cal, para a Escola da Pedreira então em construção por volta de 1932.
Não misturava o barro na cal, contrariamente ao que aconteceu no Bôlho, Cantanhede, onde desta mistura se formou o conjunto BarNécal... barro na cal ... de pedreiros e rebocadores... que teve elevado êxito musical, no 132 r/ch.
Mas o Ti Moisés foi grande músico, lá iremos...
Fazia e dava massa nas obras, e com a experiência de massa ali adquirida, foi fazer massa alimentícia, aos 13 anos para a fábrica das massas do Sr. Trigueiros.
Aos 17 anos vai para as tábuas, para a oficina de seu irmão, José de Oliveira Rafael, a aparelhar forro e solho, molduras para tectos, guarnições que embelezavam parcos salões.
Na luta entre ser carpinteiro ou marceneiro, os carpinteiros operavam em tábua grossa, especavam soalhos em casas quando ali se velavam mortos, iam a funerais de chave de fendas no bolso de trás para arrancar a cruz da urna e as respectivas mãozeiras de transporte, faziam as quermesses nas festas com tábuas de solho grosso, 22 milímetros de espessura, e se tivesse 18 milímetros de espessura já era forro, com que forravam “alojes”, quartos e salas defumadas em cozinha com pedra de lareira sem chaminé, com pilheira e palameira…
Depois da tropa, pelos 20 anos, fala com o irmão e decide encetar então a carreira de
- MARCENEIRO -
Guarda loiças, camas, molduras, guarda fatos, aparadores, mesas, de cabeceira umas, de comer outras, cadeiras, bancos, “motchos”, móveis de cozinha, enfim tudo aquilo que fazia parte do dote de noiva casadoira, quer fosse terceira, menina de casa ou costureira.
- ENTALHADOR -
Na oficina do J.Rafael, havia um catálogo por onde os clientes escolhiam as mobílias, que encomendavam para fábricas no norte.
Estas mobílias, oriundas de fábricas ou oficinas mais evoluídas em marcenaria, tinham já uns arabescos em talha, uns recortes em madeira nunca por ali vistos até então.
Ele, Ti Moisés, que tinha deixado as tábuas grossas de forro e solho, repara nas aparas que vinham dentro dos móveis encomendados.
Estes móveis vinham à cor da madeira e, na oficina, pelo Ti Moisés eram pintados à cor pretendida pelo cliente.
Pelas aparas, manda fazer as ferramentas de entalhador, as goivas, macias como noivas, umas abertas, outras ainda fechadas, umas maiores outras mais pequenas, continuo a falar de goivas, e, para não ficar por ali, tinha várias goivas cachóbi...
Na oficina chegou a ter sete colaboradores a aprender e a fazer o que ele fazia, nomeadamente o Alfredo Martinho, (Pacheco), o João Eanes e o irmão Manuel, o Adriano Silvestre da estação, o Emídio Baltazar, entre outros.
Refere que, não faz ideia da quantidade de móveis de todo o tipo que por ali foram feitos.
- DOURADOR -
Nos anos de 1960/1961, vem para Alcains uma equipa de restauradores/douradores, para dourar o altar mor da Igreja Matriz.
Por várias vezes os douradores iam à oficina do J.Rafael, buscar material para o trabalho, nomeadamente à secção de madeira fina chefiada pelo Ti Moisés.
Este, retribuía as visitas no fim do dia de trabalho, observando, perguntando, copiando os truques daquela actividade.
Entretanto, o Ti Moisés, já tinha adquirido o livro “A Arte de Dourar“, da Casa Varela de Lisboa, e tinha as luzes sobre a arte de dourar, todas bem acesas...
Reparava entretanto que, a todas as perguntas que fazia aos douradores sobre o trabalho, respondiam sempre o contrário do que dizia o livro.
Fez-se de parvo, Mné de Sousa como por cá se diz, para aproveitar ao máximo o que via e aprendia.
Ao mesmo tempo e para ir praticando, levou para casa o andor do Mártir S. Sebastião que restaurou, pintou e dourou.
Quando, restaurado, o levou para a sacristia, chamou o chefe da equipa dos douradores o Sr. José Cândido, a quem mostrou o andor.
Este perguntou, quem tinha feito o restauro que estava excelente.
Respondeu o Ti Moisés que tinha sido ele.
Ao que o Sr. Cândido retorquiu… nunca mais voltas a meter o rabo nos nossos trabalhos.
Até hoje.
- COMO DOURAR -
Com a peça de madeira em tosco, bem lixada, aplicar duas a três gessadas, gesso próprio com água, que se aplica com pincel.
Com duas lixas até ficar muito liso, aplica-se uma demão de tinta de óleo, tinta de bisnaga, para dar consistência ao gesso.
Depois de bem seco, aplicar uma demão de verniz mordente. Quando tiver cesão, aplica-se a folha de ouro cortada em almofada de coxim, em pedaços, com trincha própria e cota da mão besuntada com vaselina.
Com a trincha numa mão, apanha a folha de ouro na cota da outra mão, e coloca no sítio a dourar.
Posteriormente, escova com escova macia e, está pronto.
Caso a peça dourada seja para andar de mão em mão, aplica-se um camada de verniz próprio para não sujar o dourado.
Receita do Ti Moisés.
Nesta função, restaurou o altar da capela da Santa Apolónia, o altar da capela do Espírito Santo, três andores da nossa igreja, dezasseis castiçais, pintou o tecto da capela de São Brás, entre outros.
Mas foi no BALDAQUIM, pequeno armário onde se expõe o Santíssimo Sacramento, que o Ti Moisés ganhou a carta de alforria, que o libertou e lhe deu asas para andar pelo tempo e espaço, a renovar caras de Santos e Santas, convivendo com Serafins e Querubins, em universos povoados de estrelas, tornando mais sacras imagens que povoam as fés dos que, por momentos, foram ungidos com tais sacramentos...
- MÚSICO -
Entre 1935 e 1950, Alcains teve a primeira Banda de Música e o primeiro conjunto musical, sem nome, a que chamavam, Jaze.
- BANDA DE MÚSICA -
Da primeira banda, foi seu primeiro mestre, o Sr. José Rafael, pai do Félix Rafael, conhecido pelas suas prestações musicais nos Sultões e em acompanhamentos de viola e guitarra.
O Dr. Ulisses Vaz Pardal, já falecido, estava casado com a menina Quininha, de nome próprio Joaquina, e morava no Solar, hoje Museu do Canteiro, mas no tempo do Ti Moisés conhecido por casa da Dona Joana que era a sogra do Dr. Ulisses.
Foi o Dr. Ulisses, que emprestou o dinheiro para as fardas e instrumentos e sob a regência do mestre a banda lá foi indo… em festas, procissões em todas as ocasiões.
Assim andaram seis anos… anualmente iam a casa do Dr. Ulisses, este tinha um garrafão de um almude de vinho na mesa e ao lado o livro das contas.
Durante estes seis anos, todas as receitas foram para a dívida que entretanto foi saldada.
Mas foi, terá sido, muito tempo... e os músicos, seis anos a dar nota, sem nada receber em troca, desmereceram por nada receberem…
Ficou então o Ti Anselmo como mestre e mais meia dúzia de resistentes e aos poucos …
Também é destes tempos o primeiro conjunto musical de Alcains.
Constituído por, Moisés Rafael, flauta transversal, Sebastião Amaro, viola, Joaquim Beirão, viola, José Cassapo, irmão da Piedade tira linhas, violino.
Tocavam em casamentos, bailes, festas, teatros e claro nas festas nas redondezas, Lousa, Escalos de Cima e de Baixo e outras capitais aqui da zona.
Conta o Ti Moisés que foram tocar aos Escalos de Cima ao casamento do José Balbino que casou com uma Escaleira.
Fizeram a comida em caçolas de latão com verdete, e, claro está... diarreia, desde os noivos aos convidados... vieram aos bocados, na carroça do Requeita, deitados, à pistola, pintados...
Claro, também durou pouco, mas o bichinho estava lá...
O Ti Moisés junta agora a sua flauta transversal, ao João Soares, viola, e ao bandolim do António Soares, ambos irmãos, vindos da banda e do teatro.
Este Trio, especializou-se em Serenatas, que eram as dominicais voltas ao povo, fazendo o percurso da procissão.
Partiam frente à igreja e acabavam fosse a que horas fosse, na taberna da Marreca, no Largo do Outeiro.
Atenta ao serviço ao cliente, a Ti Marreca, levantava-se da cama e abria a taberna.
- ARTISTA DE TEATRO -
Silêncio Heróico, João Corta Mar, Filho Pródigo, Culpa dos Pais, entre outros, forma estes os dramas ensaiados pelo Padre João Mendes Pires, que o Ti Moisés, João Soares, António Soares, João Lopes “Senhor”, Lurdes Placa, Branquinhas, filhas do Ti Manel Branco, as três Coxas, Isilda, Adélia, Mariana, representaram quer na JOC, quer na Associação.
Nas Variedades, com canções, duetos, monólogos a que se seguia sempre uma marcha, de partitura comprada na Casa Valentim de Carvalho.
Rezava assim...
A minha terra,
Não sei que magia tem.
Toda a vez que a pronuncio,
Oiço a voz da minha mãe.
Minha terra, minha terra,
Quem me dera lá morar.
Nesses rios cristalinos,
Quem me dera banhar.
Não sei que magia tem.
Toda a vez que a pronuncio,
Oiço a voz da minha mãe.
Minha terra, minha terra,
Quem me dera lá morar.
Nesses rios cristalinos,
Quem me dera banhar.
Esta foto reproduz o cartaz original de um Grandioso Teatro, feito por um Brioso grupo de Amadores, na Casa da Associação, em 10 de Abril de 1944, para fins de Beneficência.
O drama, Silêncio Heróico, peça em quatro actos, contava a história de um pobre rapaz que presencia um crime dum seu tio e do qual jurou guardar silêncio...
Deus vela por ele, e a descoberta surge por documento salvador... em pleno julgamento é absolvido entre aplausos de amigos, lágrimas de alegria do velho avô, e protestos dos que o haviam caluniado...
Personagens
João Matutino, João Soares
Vicente, seu filho, Domingos M. Barata
Luis, seu neto, João Simões
Padre João, prior, António Soares
Hilário, regedor, António Henriques
Sebastião Antunes, presidente da junta, MOISÉS RAFAEL
2ª Parte
- Variedades -
Dueto Cómico, Os Dois Magalas.
Zé, João Soares.
Tónho, MOISÉS RAFAEL.
Ai o Meu Porquinho, dueto cómico.
Pantaleão, MOISÉS RAFAEL.
Anastácio, João Soares.
3ª Parte
Comédia, Brincadeiras de Carnaval
Uma comédia espectacular em que os espectadores, rebentam de riso…
Dr. Salsaparrilha, José Dias
Cláudio, estudante, Simão Barata
Henrique, António Henriques
Carlos, Domingos Barata
Eduardo, Alexandre Lopes
Ponto, José Rodrigues de Castilho
Caracterizador, José Domingos Galvão de Castelo Branco
A parte musical será executada pelo melhor grupo musical desta terra, sob a direcção do maestro, José dos Santos Rafael.
Preços
Cadeiras, 5$00, dois cêntimos e meio.
1ª plateia, 4$00, dois cêntimos.
2ª plateia, 3$00, um cêntimo e meio.
Geral, 2$00, um cêntimo.
NOTA IMPORTANTE
Em virtude de a HEAA, Hidro Eléctrica do Alto Alentejo desligar a luz eléctrica à uma hora, pedimos ao amável público a subida gentileza de estar na Casa da Associação à hora supra mencionada, para lhe evitarmos a sensaboria de, a meio do espectáculo, ver substituída pelos velhos candeeiros a petróleo, a luz magnífica da electricidade.
Decidi transcrever na íntegra o programa para, no Terra dos Cães, ficar como testemunho de uma época que passou.
Gerações seguintes continuaram este esforço de pioneiros que aqui ficam retratados para a posteridade.
O Ti Moisés, que trabalhou até aos 88 anos, fez muitas coisas na vida… servente a fazer e a dar massa, marceneiro, entalhador, dourador, músico e por fim artista de palco.
Conta-me que, os duetos cómicos eram sempre com ele e com o João Soares, um artista de se tirar o chapéu, e que das mulheres, a Isilda Coxa era uma mulher com muitas capacidades artísticas.
Com a mesma naturalidade com que pinta a cara a um Santo, ria-se, cantando em memória ainda afiada uma quadra do dueto cómico, Dois Magalas que interpretou em 1944.
Tem o homem que marchar,
Tenha ou não vocação.
Se na formatura falar,
Ganha logo a detenção.
Tenha ou não vocação.
Se na formatura falar,
Ganha logo a detenção.
Detido fiquei eu, mais que isso, preso com agrado, às muitas memórias do Ti Moisés e às artes que as fotos documentam...
O Ti Moisés, artista de refinada sensibilidade, tem 90 anos de simplicidade.
Recordo-o de calça de ganga azul, perna larga, com duas alças e bolso no peitilho central, sempre maquilhado com o pó da madeira.
Com o Ti Moisés parado, Alcains desce mais um bocado...
Entalhador/dourador, não há mais e não vale a pena dar ais...
Manuel Peralta
Moisés Rafael…um artista para a posteridade
ResponderEliminarO “homem do leme” esmerou-se na abordagem do perfil deste alcainense, um verdadeiro artista nos vários instrumentos que as suas mãos tocavam.
Em minha casa, ainda hoje tenho duas arcas por ele restauradas em 1980, quando já se arrastavam semi-abandonadas no sótão da casa em que eu então morava.
Claro semi-abandonadas, antes de passarem pelas mãos do artista Moisés Rafael.
Realmente a arte de dourador, e restaurador, a minúcia e a precisão desses trabalhos, que algumas vezes espreitei, quando morava na Rua da Liberdade, e o r/ch da sua casa, era o atelier, onde fora das horas de trabalho e talvez aos fins-de-semana, se entregava solitário à sua arte.
Em boa verdade, não me recordo de ver o Tio Moisés nas tertúlias que aos domingos cruzavam as Ruas de Alcains, na ronda das tascas.
É bem nítido no entanto, o som melódico da sua flauta, que se destacava nas Variedades nos Teatros na JOC e na Casa do Povo, sobrepondo-se ao conjunto nem sempre muito bem afinado do conjunto.
Mas a flauta do Tio Moisés, ajudava a camuflar muitas fífias dos companheiros de empreitada!
Quanto à menção à Banda, e à factura que levara seis anos a pagar, recordo-me que o credor, homem de teres e haveres, era o mesmo que pregava, que a Justiça se deve pedir de pé! Bem pregava Frei Tomás…
Recordo-me da Banda ser dirigida pelo Tio Anselmo, suponho que durante uns bons anos. E ainda ressoam nos meus ouvidos, o som grave da Banda no enterro do Senhor, na 6ª Feira Santa.
Desconhecia no entanto, que Moisés Rafael, um homem circunspecto, subira ao palco, e até partilhara o mesmo, contracenando em Comédia, com outro alcainense, este um homem extrovertido, uma máquina de fazer rir, de nome João Soares, pai do nosso comum amigo e companheiro do 132 r/ch em Coimbra, o Ezequiel.
A alusão ao BAR NECAL, surge enquadrada neste contexto. Um conjunto musical, que na pronúncia dos naturais da região litoral, companheiros de mesa, soava a Barro na Cal, e que o gozão “homem do leme” deduzia com inocente candura, deveria ser constituído por pedreiros e rebocadores! E isto à mesa, era um fartote, com caneladas sob a mesma, quando os temas se repetiam…
Ok Supreme, Uskvarna, etc, etc... A juventude era irreverente, mas o “homem do leme” que tem no currículo, a simulação de tirar fotos ao Venerando D. Agostinho de Moura, sem rolo na máquina, e mesmo assim a pedir-lhe que fizesse pose, era o máximo…
Após este parágrafo, em que por momentos deixámos o espírito vaguear pelos Olivais, em Coimbra, centremo-nos na cultura e nos artistas de décadas atrás.
E ficámos a saber que até o circunspecto e “mal dizente” Zé Castilho da Loja, fora ponto, numa peça de teatro.
Outros artistas citados, já mal os conhecemos na faceta de amadores teatrais.
Recordo-me porém do Domingos Barata, suponho que o “Coxarra”, talvez o que mais se aproximasse de João Soares na arte de fazer rir, e o João Lopes “Senhor”, que vi actuar uma única vez, já na década de 60, talvez numa das últimas vezes em que houve Teatro na Associação, já sem as limitações da HEAA, mas em mau estado de conservação.
Agora há por ali nomes que há muito não estão entre nós, como José dos Santos Rafael, António Henriques, José Dias, e outros, cujas vidas talvez mereçam uma abordagem na Terra dos Cães.
Portanto, num tempo em que falta trabalho, o “homem do leme”, se o quiser, até poderá ter que fazer horas extraordinárias!...
MC
Fotos e textos de MC sobre a Guerra Colonial, em:
Panoramio photos by jose castilho
Galeria Noqui
Moisés Rafael…um artista para a posteridade
ResponderEliminarArreliadora gralha, caiu sobre uma das primeiras frases do comentário anterior.
Vou repor, o sentido da mesma, na qual se destaca o mérito de amador musical do Tio Moisés Rafael, quando colaborava musicalmente nas Variedades nos Teatros na JOC e na Casa do Povo.
A frase correcta, é como segue. « Era bem nítido no entanto, o som melódico da sua flauta transversal, que se destacava no conjunto de sons, emitidos pelos seus companheiros de função, nem sempre muito bem afinados.»
E pronto, a correcção está feita.
MC