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domingo, 9 de janeiro de 2011

Manco, Américo de Oliveira Marques

O Américo Manco


Sapateiro de profissão e figura popular, o Américo deixou-nos uma marca indelével, pela sua modéstia, amizade e pelas muitas anedotas que lhe são atribuídas.


Filho de José Marques e de Maria Joaquina de Oliveira, nasceu em Alcains na Rua do Hospital Velho no dia 17 de Agosto de 1934.

Casa onde nasceu e morou o Américo Manco, Nº7

Terceiro filho de uma família de quatro irmãos,
António, Maria de Lurdes (falecida), Maria José (invisual).
Contaram-me e conheço tantas coisas sobre o Américo, que confesso não saber se tudo é verdade, nem por onde começar.
Segundo o seu vizinho e amigo de infância João Pionto, o Américo teria entre 7 ou 8 anos quando ocorreu o acidente que originou a amputação da sua perna direita, a poucos centímetros abaixo do joellho.
Caminhava o Américo, o João e mais algumas crianças pela Rua da Pedreira acima, atrás de um carro de vacas carregado com pedras, com o ganhão à frente com as rédeas numa mão, e a vara com o aguilhão na outra como era hábito.
Quando o carro chegou ao cimo da barreira, sem o ganhão se aperceber, subiram para o carro.
Talvez com a trepidação, uma das pedras começou a deslizar. O João e os amigos ainda gritaram ao Américo para ter cuidado, mas não deu tempo para nada. O Américo ainda saltou, mas não conseguiu evitar o desastre.

Rua do hospital

A pedra partiu-lhe a perna mas, o ferimento nem parecia ser muito grave.

Como acontecia com muita frequência naquela época, levaram o Américo ao “endireita” e tratavam-lhe a ferida em casa.
Passado algum tempo, a família apercebeu-se que não conseguia curá-lo, levaram-no ao hospital e o diagnóstico tanto temido fez-se ouvir : temos que lhe amputar a perna.
Logo que o Américo se habituou à muleta, começou a brincar ao berlinde, embora tivesse que a pousar no chão. Também conseguia jogar à bilharda e aos botões e quando tocava o clarim p’ró palmanço de maçãs, figos, ‘malacôtos’, etc. acompanhava sempre o grupo: nunca se considerou inferior aos outros.
Conseguia subir algumas paredes e uma vez no cimo, se pudesse saltava ou então descia devagar. Mesmo adulto continuava igual; acompanhava os amigos quando iam aos poços à passarada com a rede, que depois preparavam e comiam no Vaquinha (depois de encerrar a barbearia) e outras mais.
Tinha uma força extraordinária nos braços para se içar.

Quelha da mesma rua

Com alguns anos de diferença na idade, quando penso no Américo, a primeira imagem que me vem à memória, é a de um rapaz que usava óculos com umas lentes muito grossas, alegre, muito falador, que caminhava com o auxílio de uma muleta.
Sempre conheci o Américo a trabalhar como sapateiro.
O ti António e João Rafael (Soares), os irmãos Preto, João, Manuel e António, mais tarde o Mné Vaquinha, eram quem lhes dava mais trabalho.
Como eu brincava muito no Largo de Santo António, por vezes o ti João Preto que morava ali no Largo, chamava pela catchopada para lhe endireitar-mos pregos.
(Eles eram tão pequeninos que só os dedos da canalha os conseguiam endireitar sem bater muito com o martelo nos dedos).
Passáva-mos horas a endireitar pregos para receber-mos um tostão cada um, com o qual compráva-mos três rebuçados. Esta era a única solução que tinhamos para adoçar a boca.
Foi aqui no ti João Preto, enquanto endireitava pregos, que tive conhecimento da devoção ferrenha que o Américo tinha com o Sporting. O Jaime (filho mais novo do ti João) para o enervar, dizia-lhe que o Benfica era o melhor. Que o Sporting era uma merda. Que o José Águas era melhor marcador que o Travasssos. E lá ia a muleta p’ró ar em direcção à cabeça do Jaime.


Mais tarde quando começou a usar a prótese, era a perna de pau que voava.
Os sapateiros usavam uma cadeira baixa, por isso o Américo tinha que tirar a prótese para se sentar e segurar o calçado entre os joelhos, como o faziam todos os sapateiros).

Anedotas ou casos verídicos há dezenas sobre o Américo.

O Zé Saraiva, quando veio de França para dar a tropa, segundo a sua expressão, trouxe uma tchcolatera (carro de segunda mão) ainda em bom estado. Uma noite o Saraiva o Américo e mais uns quantos, vã p’rá festa da Póva. Táva lá a nossa tcharanga a tocar: já tinham dançado várias modas quando a tcharanga começou a tocar uma valsa.
O Américo ao princípio ainda conseguiu acompanhar o ritmo mas, pouco a pouco começou a abrandar. Quando os seus colegas se aperceberam disseram-lhe, acelera Américo.
Mas o nosso dançarino não podia mesmo acelerar, tinha um problema grave que o impedia de valsar.
Então disse à rapariga que o desculpasse mas tinha que parar um momento. Sem se incomodar, arregaçou a perna da calça para apertar algum parafuso ou correia? A rapariga quando viu a perna de pau fugiu, talvez p’ra casa, porque nessa noite não voltaram a vê-la no arraial.

Ruínas da rua do hospital

Era assim o Américo que no tempo do audio, também era um fanático do relato do futebol na venda do ti Domingos.
Ali passava a tarde aos Domingos com a orelha colada ao rádio e mesmo, só a ouvir relatar o Artur Agostinho ou outros, já dizia que o árbito não tinha que assobiar, porque não tinha sido mão ou canto...
No fim dos jogos saíam p’rá praça discutir: conseguia calar a boca a todos os benfiquistas, e dizia, que só não calava a boca ao pai (um benfiquista ferrenho) por respeito.
Se o Américo já era assim a ouvir o rádio, imaginem com a chegada da televisão na varanda do Sr. Raul, mais tarde na sede do GDA, no café do ti António Infante e algumas tabernas.
O ti Domingos da venda dizia que o Américo aos doze ou treze anos de idade, já conhecia a composição de todas as equipas nacionais da primeira divisão.

Galarissa do Outeiro (wc público)

Dizia-se em Alcains, que o Américo tinha mil razões para detestar o pai, que seria culpado da sua dificiência visual, assim como das suas duas irmãs, mas não era o caso: o Américo acarinhava e admirava o pai.
Após o nascimento do primeiro filho, o ti José Marques foi trabalhar para Espanha onde terá sido infectado com a sífilis.
Doença que trasmitiu à esposa, que por sua vez transmitiu aos três últimos filhos e que daria origem à dificiência visual..
Numa consulta que fiz na internet sobre a sífilis, tirei o comentário que se segue em itálico.

(Neste estágio avançado da sífilis pode, posteriormente, afetar órgãos internos como o cérebro , nervos , olhos, coração, vasos sanguíneos , fígado, ossos e articulações. Sinais e sintomas do estágio terciário da sífilis incluem dificuldade de coordenar os movimentos musculares, paralisia, cegueira gradual e demência.)

No início da guerra colonial, o Américo foi durante algum tempo detestado pelas raparigas da nossa terra , que tinham os namorados no ultramar.

Estendal de roupa na rua do hospital

Como a Terra Deles sempre foi terra de ditos, alguém inventou que os rapazes antes de saírem para o ultramar, pediam ao Américo para olhar pelas namoradas. Que até lhe deixavam dinheiro para comprar selos para lhes escrever, caso alguma pisasse o risco. Facto que ele sempre negou.
Ninguém é perfeito: ele teria outros defeitos mas, acusar as raparigas por alguma falha que cometessem, é duvidoso. Além disso, nessa época já o Américo tinha muita dificuldade em ler e escrever.
Quem conheceu o Américo deve recordar-se, que quando ele conversava com alguém, olhava para a pessoa sempre um pouco de lado, porque assim via melhor. Daí a sua dificuldade em ler e escrever.


Quando entrei no café do ti Domingos para pedir algumas informações à Manuela, porque o Américo passava ali muito tempo na venda; também me contou que num dia de inverno à hora de fechar a taberna, “tchôvia água se Dês a dáva” e quando os homens começaram a pegar no guarda-chuva para saírem, alguém se queixou que lhe faltava o seu, ao qual o Américo respondeu. Cada um qdzinrasque! ê já ténhê o mê i vô-me imbora!
No dia seguinte o guarda-chuva apareceu na taberna: soube-se que foi o Américo o autor da façanha. Foi só um empréstimo.
Brincadeiras destas, que não prejudicavam muito, excepto o banho que o homem apanhou, o Américo tem dezenas. Aconteceram-lhe algumas coisas e provocou outras, que quem não o conheceu pensa serem anedotas.

Do Tchico Vaquinha aprendi que na barbearia, do lado que comunicava com a Rua do Saco, no local onde concertavam os sapatos, táva lá o “Cantinho do Américo” .
Era ali que o Américo apostava, que conseguia beber meio quartilho de vinho de cabeça p’ra baixo sem verter uma gota, e conseguia ! Encostava-se ao cantinho com a cabeça p’ra baixo, a perna e meia p’ra cima e, aos poucos, conseguia beber o vinho.
Em dezenas de apostas que o Américo fez, o Tchico só se recorda de o ver aflito três ou quatro vezes. A aposta era sempre o meio quartilho, e uma carcaça que naquela época a ti Piedade vendia a dezoito tostões.


Na barbearia, às escadas p’ra subir p’ró primer andar, tchavam-lhe as escadinhas p’ró céu.
Era por ali que subia o Américo e o Mné Vaquinha, após anunciarem em voz alta para que todos os presentes ouvissem. Mnel vou lá incima bater uma. Ou então: Américo vou lá incima bater uma.
Esta manobra acabou por despertar a curiosidade. Um dia alguém subiu ás socapas e apanhou o Américo a bater uma.
Atenção não é o que você pensa.
O Américo táva a bater uma gemadinha com vinho do Porto.


Durante dois meses e meio que acabo de passar em Alcains, todos os dias procurei uma fotografia do Américo. Interroguei alguns familiares (primos) que nada tinham, indicavam-me esta ou aquela pessoa que talvez tivesse, finalmente não tinham; ou está nas mãos da minha esposa, ela é que procura .
Através da internet consegui o número de telefone do irmão, também não tinha, e disse que podia lá ir a casa, forçar a porta e procurar, que ele não se importava.
Claro que não o fiz.
Já nos últimos dias da minha estadia, alguém me indicou a ti Idalina da Silva Lopes (esposa do ti António Ramalho) porque o Américo também ali passava muito tempo.
Esta Senhora tinha esta fotografia, tirada no alpendre da Santa Apolónia, aquando da primeira festa que fizeram: a dos cinquenta anos.
Quem conheceu o Américo vai ficar surpreendido ao vê-lo na foto sem os óculos: eu também fiquei!
Mas se ele os tirou teve a sua razão, talvez para mostrar aos alcainenses quem era o Américo sem óculos?

Américo, em cima, terceiro da esquerda para a direita
(À direita contra o muro, a bengala do Américo)

Deliberadamente e para exercício de identificação aos amigos do "Terra dos cães", sugiro que cliquem em cima desta foto e identifiquem a rapaziada do tempo do Américo.

É possível que durante os convívios organizados pelo Núcleo Sportiguista, o Américo apareça em alguma fotografia com o cachecol, ou camisola do Sporting.

Camisola que ele tinha por hábito vestir quando o Sporting perdia ; dizia que os amigos eram para as ocasiões; era a sua maneira de apoiar o Sporting (O Américo também lhes chamava lagartos).
Na eventualidade de aparecer alguma foto do Américo, era favor enviar para o blogue terradoscaes, ou contactem o M. Peralta. (“A fotografia depois de digitalizada é devolvida”.)


Graças ao ti António Ramalho e à ti Idalina, o Américo também melhorava um pouco o seu quotidiano.
Com a ajuda de um carro de mão, entregava as garrafas de gás na casa dos clientes.
Ia à loja da ti Marizé Carrega e ao Sr. Benedito Beirão pagar-lhes as letras de crédito, ia ao correio e executava outros pequenos serviços.


Na época das férias e com a chegada dos emigrantes, eram muitos os que queriam pagar um copo ao amigo Américo: este à noite andava quase sempre embriagado e ninguém o conseguia levar a casa. Só o ti António Ramalho ou algum dos filhos conseguiam levá-lo e meter na cama.
Foi também esta Senhora que o convenceu a inscrever-se no lar. Também era a ti Idalina que quando via o Américo a coxear mais que o costume, já sabia que a prótese o tinha magoado, e com alguma dificuldade conseguia que ele a tirasse para lhe curar a ferida.
Quando o Américo precisava de alguma coisa, por vezes já tinha vergonha e não tocava a campainha. Andava por ali na rua até que a ti Idalina ou o ti António o vissem e, perguntassem se necessitava alguma coisa.

Para terminar este pequeno resumo sobre a vida do Américo, aí vai mais uma das suas muitas façanhas.

Já no fim da tarde, num dia que tinha sido bastante chuvoso, táva o Américo com um grupo de rapazes a conversar em frente da venda do ti Domingos, quando apareceu um rapaz desenfreado de bicicleta, que se escondeu na quelhinha da Sra. D. Josefina.
Passado um momento chegaram dois polícias de viação e trânsito de motocicleta, que pararam e perguntaram se não tinham visto alguém de bcicleta, ao qual responde logo o Américo.
A esta hora já tá em casa. Perguntaram-lhe onde morava e disse-lhes (távam de costas viradas p’rós sanitários). "Tã a ver alã aquela rua a 100m ? Viram ali à esquerda, adpôs a primêra à drêta, quêle móra logo ali".
Assim que a polícia arrancou diz o Américo, "fugir rapaziada que daqui apôque eles tã aqui outra vez".
Pudera! Enfiou com eles na quelha do Vale de Bravo. Para quem conheceu, imaginem aquilo num dia de chuva, nos anos 60. Era ali a maior “galariça” (imundice) que existiu na terra deles.
Os polícias regressaram e procuraram, mas já não havia ali ninguém; estavam todos a rir-se por detrás dos vidros das janelas do Clube Recreativo a ver os polícias todos sujos.


Com a morte do Américo no dia dezassete de Fevereiro de 1998, Alcains perdeu mais uma figura emblemática.
Um simples sapateiro, mas um homem muito popular.
O Núcleo Sportinguista de Alcains prestou-lhe uma homenagem bem merecida, cobrindo o seu caixão com a bandeira do Sporting, que ele tanto adorou.

MG e Manuel Peralta

2 comentários:

  1. Américo “Manco”… um sportinguista que não gostava de molhar-se…por fora…

    Do apontamento relativo a este castiço alcainense, retenho a tal “estória” da GNR motorizada, perseguindo um acelerado ciclista!
    Não é nova, mas sem o apontamento que o Geada aqui inseriu, eu já não conseguia associar a autoria da “estória” propriamente dita, prefácio, desenvolvimento e conclusão, ao protagonista do apontamento!
    É uma das virtudes deste espaço.
    Associar o seu a seu dono!
    Quanto ao facto dos amigos do Américo “Manco” ao partirem para o Ultramar, lhe incumbirem a tarefa de “alcoviteiro”, vigiando a virtude das noivas que cá deixavam pelo menos dois anos, porque a carne é fraca, e Alcains terra de muita costura, como o “homem do leme” muitas vezes refere, tarefa que pelos vistos não cumpriu, é a primeira vez que a ouço!
    Mas que dignifica a sua memória!
    Com o seu desaparecimento, os sportinguistas de Alcains, ficaram claramente mais fracos!
    MC

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  2. Amigo Peralta

    Guardo na memória um acontecimento que não foi referido na história sobre o “pobre” do Américo.
    A minha simpatia pelo Sporting, surge numa altura memorável para mim. Lembro-me do momento, mas não consigo dizer ao certo em que idade ocorreu, talvez com 5/6 anos. O ciclismo é a minha modalidade de eleição desde miúdo. Por isso, foi com grande ansiedade que aguardei pela chegada de uma etapa da volta a Portugal que nesse ano terminava em Alcains, precisamente junto do café do” ti Domingues”. Foi ali que vi chegar o meu “ídolo” Joaquim Agostinho. Foi ali que vi o Américo “manco” agarrado e às palmadas nas costas de forma efusiva ao Agostinho com o atleta visivelmente cansado e irritado com tamanha “agressividade” no bom sentido, entende-se. O Américo foi de imediato afastado, mas para ele e não só, o momento foi de grande exaltação.

    João Manuel

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