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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Álvaro Padre Escuteiro Engenheiro


Álvaro Pereira de Jesus, era o seu nome de batismo, mas, como o nome indica, foi e era “de Jesus”.
Também era e foi de muitos outros, paroquianos, amigos, forneiras, escuteiros e escuteiras e, vejam lá, de muitos lobitos e promissoras aquelás.
Padre inconformado, viajante, caminheiro andante, que traçou o seu caminho de apostolado com Jesus de braço dado e, com a igreja, não de, mas, ao lado…
As mulheres do tempo da minha mãe, que coziam pão, assavam coleiras de batatas com sal, e latas de sardinha com colorau e farinha no forno da “ti Cuca”, tinham por ali o irreverente, ainda em seminarista, à perna. Nada sonsinho e muito menos caladinho, não lhe auguravam grande caminho, era um andino.


Naqueles tempos, isto é, nas décadas de quarenta a sessenta, em termos gerais, iam para o seminário alunos de quarta classe bem feita, espertos, normalmente filhos de casas cheias de gente, sem lareira mas com pilheira e palameira, alguns dormindo na camarinha, mas que a pobreza não permitia continuar a estudar.
Outros, tinham já religiosa tradição familiar e, muitos outros normalmente com tias solteiras, que por haver trabalho em casa não foram freiras, espiritualmente esposas  do Coração de Jesus, de larga fita vermelha de seda ao peito com pendente medalha de alumínio,  assediavam sobrinhos de terço em riste, para as virtudes da fé e da vida de Cristo.


Sei do que falo, pois tive uma tia, solteira, Ana Minhós, que rezava pai nossos como quem come tremoços...
Entretanto o meu amigo Álvaro foi Padre. E eu, com ele, fui Escuteiro. E com ele, muitos outros  e muitas outras, foram escuteiros e escuteiras. E com ele, crescemos...
É com o Padre Álvaro que o escutismo sai da sacristia, onde estava quentinho, abafadinho como gato em soalheiro, enrolado  na puída batina do saudoso Padre António Afonso Ribeiro. Primeiro na JOC, depois na casa onde hoje está a praça e mais tarde no Solar de Ulisses Pardal.
Com ele, o escutismo de Baden Powel foi de acampamento, de campo, de mata, de sol e chuva, de fogo de conselho, de teatro, de flores da fragância, de tchuna longa…há de ser aqui, de pistas, de janeiras, de farrapeiro, de encomendação de almas, de missa, de farda, de insígnia, de procissão, de alvo pão que alimentou peitos, com farinha doada aos pobres pelos states...


Errante, foi com ele que aprendi o que era o inter-rail, para onde partia de mochila para a Suissa, levando consigo outros amigos, que queriam alterar a pacatez então vivida, olhar para o lado, ajudar os outros construindo por aqui e ali, partilhando costumes, cultura tradições, replicando por cá sem meios, saborosa ironia, o que por lá de bom se fazia.
Padre de rua, de gente, de pessoas de carne e osso, de gente de margem, no limiar da vida, ao lado e não dentro do tabernáculo como sucede em Fátima, no Cenáculo.
Asceta, padre de pão, queijo e vinho à refeição. Sublimador, queria com mais emoção que razão, juntar na casa de Cristo, indiferentes, agnósticos e para a religião tristes, com os cursos de dominiques...
Travanca, Santa Apolónia, Tanque das Freiras, Teixoso, locais de acampamento onde a juventude de então, sob a boa disposição permanente do Padre Álvaro, competiam, confraternizavam entre melros, e cães, patrulhas de “àbaxias” que gozavam todos os dias.
O Zé Caldeira, (Joaquim Máximo em versão ecológica) de transporte do escutismo, o Jorge Eanes, (guita) o Mário do chafariz velho, o João Minhós, o chefe Granada, o seu irmão, caminheiro Elias, a Ercília entre outros, por lá, comungam neste momento a chegada prematura do chefe da patrulha saudade, o padre Álvaro.
Nós por cá, hoje na cerimónia fúnebre na igreja matriz de Alcains, na presença do senhor Bispo da diocese, assisti a um brilhante testemunho de responsável de um grupo de casais que partilharam com o padre Álvaro cerca de 30 anos de lhana amizade.


Numeroso cortejo com música e cânticos dos rapazes da sua obra no Cenáculo, acompanhou o féretro, até a cemitério. Antes de o corpo descer à terra o seu amigo de longa data, Doutor João Lopes de Oliveira, proferiu um testemunho que emocionou tudo e todos. Homem da Universidade das Letras, de voz sentida, na terra deles batida, falou do amigo Álvaro e das suas lutas, desde a limpeza da então aldeia, ao abastecimento de água, do urbanismo, da sua ação, da alegria, do humor que só um verdadeiro Profeta que trabalhou toda a vida, convicto de que, para quem tem fome o pão é mais prioritário que um livro, pregando, praticando, profetizando deste modo a chegada do Papa Francisco, também ELE militante da ação da igreja da periferia, dos pobres coitados, deserdados…
Filho de pedreiro e parteira, concluiu o curso de engenheiro civil, cujos colegas de muito longe se deslocaram para a despedida do amigo dos tempos de estudante. E que histórias têm dele!!!
Quando um amigo se passa para a outra margem, no barco da amizade só com viagem de ida, vai sempre um pouco de nós. Ele o padre Álvaro que aos 15 anos me estimulou a escrever para os jornais, deixou por cá numerosos amigos, fossem escuteiros ou anti escuteiros.
Partiu. A sua família dolorosamente vê partir precocemente o seu irmão mais velho, o amigo, o homem que tudo fazia para ajudar quem dele se acercava, mas pedindo muito a todos para ajudar os outros.


Na minha memória sem arestas a que chamo saudade, relembro um padre Álvaro que não tendo muito, precisava de pouco, o homem que cavou terra úbere que deu frutos, o homem a quem nunca vi levantar a mão, falar mais alto pensando que tinha razão, tolerante, amigo e grande amigo da vida e da paz entre os homens. Foi isto que lhe disse ao telefone vésperas de ano novo, já no hospital. Era o que tinha mais à mão e sei que para ele chegou. E merecia. “Tchuna longa”, amigo Álvaro.

Manuel  Peralta

Nota: Pela segunda semana consecutiva pedi ao Reconquista, que é propriedade da Fábrica da Igreja Paroquial de S. Miguel da Sé, a publicação deste texto sobre o Padre Álvaro.
Até à edição saída hoje, (22.jan.2015) nada.

1 comentário:

  1. Uma sentida evocação da partida para a outra margem do Padre Álvaro. Só não foi totalmente surpresa, porque o "homem deste leme" já me informara de que o Álvaro passava bastante mal. Como não fui escuteiro, guardo dele outras memórias. Por exemplo quando talvez em finais de Setembro de 69, no seu quarto no Seminário, acompanhado talvez do seu irmão Elias e do "homem deste leme", nos mostrou um exemplar de um proibidíssimo "L'Aurore" que trazia uma "fantasmagórica" entrevista a Salazar. Que um ano após a tomada de posse de Marcello Caetano, continuava convencido de que continuava presidente do conselho. Um verdadeiro e surreal teatro de sombras, alimentado pelos ministros que visitavam regularmente São Bento, como se fossem a despacho. E tendo o jornalista do direitista L'Aurore, perguntado a Salazar, o que pensava de Marcello, este respondia mais ou menos assim "ele lá está na Universidade, dedicado ao Ensino". Eram assim aqueles dias cinzentos, a pouco mais de um mês das Legislativas de 69. Creio até que foi o Padre Álvaro, o fiel depositário da relação de votantes em Alcains, que lhe foi entregue por esse "perigoso agitador" que era o Dr. Manuel João Vieira. Outros falarão com maior propriedade do que foi o padre Álvaro. Eu fico por este testemunho de homem esclarecido e combativo, sem medo de correr alguns riscos. Calculo que a proximidade de um Major, também "Jesus" Correia, terá impedido a sua mobilização como Capelão Militar...Para toda a família que tem visto partir muito cedo alguns dos seus membros, o Elias, recentemente o Bruno, vão as minhas condolências...

    Zé MC

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