Não, não é o José “Ceguinho” que tocava acordeão nos casamentos e nas voltas da malta da inspecção militar.
Trata-se de dar vida ao Ti José dos Santos Pedro do Vale, popularmente baptizado de Zé Cego, que nasceu em 18 de Janeiro de 1903 e que foi casado com Maria da Natividade que nasceu em 11 de Março de 1905.
Habitavam no Cabeço, pequeno amontoado de casas encarapitadas umas nas outras, com bredas, passagens entre as casas de menos de meio metro, no limite da Rua do Regato da Sola, a caminho da Lage da Judia para a Travanca.
José dos Santos Pedro do Vale / Maria da Natividade
O Ti Zé, nasceu quase cego de uma das vistas.
A pobreza, a ausência de quaisquer cuidados médicos, a falta de tudo em 1903, imagino, conduziram a que acabasse por cegar também da outra.
Teve oito filhos, dos quais seis se encontram vivos, cinco mulheres e um homem.
Para quem me lê, e que, por esta descrição, ainda não identifica a quem me refiro, publico as fotos de duas das suas filhas quando tinham 21 anos, com quem passei uma tarde de canto, na rua do Degredo, na casa que foi dos Martânos.
Maria da Conceição Vale
Maria José da Natividade Vale
Tabernas, sapatarias e barbearias eram por volta de 1950/60 e 70, locais de encontro de todos, principalmente daqueles que afogavam tristeza e pobreza em solidão.
Procuravam algum conforto, uma palavra, um cumprimento, uma fala, um dito, uma novidade.
Cada um contava o que sabia e assim se aprendia...
Criança que era em 1960, nos bancos da barbearia do meu padrinho, Manuel da Paixão, no Outeiro, ouvia maravilhado da memória do Ti Zé Cego um desfilar de ditos populares, quadras, elegias melhores que suaves poesias, de cego que via, com a imaginação de um cérebro ladino que tanto impressionava este, então, menino.
Foto actual de duas das filhas
Sentámo-nos, afastámos o pigarro da garganta, e com a música do fado canção que reza assim... óh bairro alto, fidalgo e fanfarrão... iniciámos um esforço de memória para recompor uma crítica social áspera aos homens e mulheres daqueles tempos na visão do ti Zé Cego.
MULHERES
A vida é para as mulheres,
Quando se juntam,
Fazem (a)ssembleia.
E falam da vida alheia,
Com a boca cheia,
E na plateia.
Quem quer ouvir as mulheres,
É nos fornos e nos soalheiros,
E ali dão ao linguado,
De quem é casado,
E também solteiro.
Perna estendida,
Dão à tramela.
Falam da vida,
De qualquer donzela.
Vão para casa,
Vão a correr.
Andam na brasa,
Porquê têm em casa,
O serviço para fazer.

HOMENS
E vamos agora aos homens,
Os que são amantes,
Da bebida.
Andam dias sem comer,
Só a beber,
Desgraçam a vida.
Vão pra casa fora d´horas,
Com a carguinha,
E a cambalear.
Se as mulheres os tratam mal,
Espetam-lhe um estalo,
Antes do jantar.
Se tem má vinho,
Vai p´ra casa avariado.
Pelo caminho,
Cantando o fado.
A cambalear,
Com a carguinha...
Se a mulher lá está,
Se começa a refilar,
Espeta-lhe uma sardinha.
E quando a sardinha é boa,
Minha patroa lhe dá valor.
Mas eu gosto da sardinha,
Quando é fresquinha,
Pelo calor.
E com a cota da mão,
Não gosto dela,
Nem com tomate.
Antes quero comer só pão,
Do que sem razão,
Comer três ou quatro.

VENTO
Filho da puta do vento,
Só mal é que faz...
Ainda há pouco,
Aventou um rapaz.
Dava-lhe de frente,
E empurrava-o para trás.
Nesse dia,
Eu ia pr´o comboio da manhã.
Aparece desenfreado,
Aos empurrões a mim.
Mal me descuido,
Já estava na estaçã(o).
Esse dia,
Fui eu que ganhei, cá na aldeia.
Quando cheguei à estação,
P´ra dar partida,
Ainda faltava hora e meia.

ALCAINS
Alcains, está muito aumentado,
Já vale mais um tostão.
Já cá tem a electricidade,
E o relógio de repetição.

PROCURANDO NAMORADA
Quando o Ti Zé, sempre de bengala e cigarro ao canto da boca, vinha da taberna do Ti Domingos, as mulheres, em grupos, sentadas nos batoréis à porta de casa, pediam-lhe,... óh Ti Zé, diga lá esta... ao que ele sempre anuía.
Ah catchópas, catchópas?!?!
Qual de vós está solteira?
Tenho uma bicicleta e uma mota,
E não acho quem me queira.
Ando farto de procurar catchópa,
E tudo me vira a trazeira.
Aquela que for comigo,
Eu faço-a feliz.
Tenho uma seara de trigo,
Que me dá pelo nariz. (ele tinha bigode)
Tenho uma arte aprendida,
Já não sou aprendiz.
Aquela que for comigo,
Não é para a enganar.
Mas se ela o quiser comer,
Tem que ela trabalhar.

EMIGRAÇÃO - FRANÇA
Óh Ti Zé, Ti Zé, diga lá a da França...
Hoje a França está a dar,Para os nossos Portugueses.Há lá muitos a trabalhar,Que eles cá andavam tesos.Sai o casado,Sai o solteiro.Sai o criado,Sai o sapateiro.Há quem venha cá de verão,Cada um vem quando quer.Se o espera na estação,E se é casado,Abraça a mulher.É uma alegria,Se vem com saúde.Naquele dia,Dá volta a tudo.

Recordam as suas filhas, que por vezes iam pedir esmola com o pai, as longas caminhadas a pé para recolher parcos tostões, as dificuldades da vida, e como dormiam vestidas na camarinha, riam-se a bandeiras despregadas pois tanto rompiam de noite como de dia...
O Ti Zé sempre me impressionou, em criança e ainda hoje, pelo respeito que nutro por gente simples mas de grande humanidade, em vidas em que a adversidade sempre esteve presente.
As suas rimas retratam a vida sofrida daqueles tempos, vistas do lado de quem por lá passou, um retrato social dos viveres de então.
Recordá-lo, emocionado, e dar-lhe vida no Terra dos Cães, é uma forma de reviver e prestar um tributo a quem me despertou na arte de versejar.
Manuel Peralta