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sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

Bairrismo, do que eu me lembro… (1)

Filho de pedreiro e parteira, Amândio de Jesus e Maria da Luz Pereira, em 5 de julho de 1964, foi ordenado padre, Álvaro Pereira de Jesus, conhecido em Alcains por “padre Álvaro” ou “padre cuco”, apelido este herdado do apelido de seu pai.

Por outro lado, existia na praça, a caminho da rua do ribeirinho, o forno da “cuca”,  Joaquina, tia do seminarista.

Por vezes em Alcains, era unicamente o que se herdava, e desse herdo, dependia muitas vezes aquilo a que se chama, ter sorte na vida, uma vez que esse herdo, com toda a carga histórica da vida de quem se descendia, colava-se mais a cada um, que a própria pele.

E toda a vida se carregava com esse apelido … “tem a quem sair”… “não me admira, já o avô dele era assim”…  ou uma mais geral, “quem sai aos seus, não degenera”… toda a vida.

Por esses tempos, 1964, o seminário estava repleto de seminaristas, cerca de uma centena, e vários padres ali exerciam a função de professores dos candidatos a padre.



Paroquiava nesses tempos Alcains, o Senhor Vigário, o saudoso Padre António Afonso Ribeiro.

O escutismo de então era o escutismo de Baden Powel e de sacristia, amparado pela mão, por vezes e, amiúde pesada, do Senhor Vigário.

O padre Álvaro era um padre porreiro, gostava de tocar viola, não cantava bem, e a voz dele só aclarava quando a jeropiga das beatas, a castanha assada e as passas, envolviam bemóis em solfejos de muitas claves de sóis… isto no seu quarto, em saídas de pé ante pé, comigo e alguns, outros em surdina, pelas tantas da matina.

Deve-se ao padre Álvaro a saída do escutismo da sacristia, e a passagem para a sociedade em geral, com a dinamização de muitos jovens de todas as idades, lobitos, patas tenras, àquelás, exploradores, escuteiros, caminheiros, chefes de patrulha e de agrupamento.



No auge do escutismo Alcains teria mais de 120 jovens e adultos, no agrupamento 160, que funcionava já no solar de Ulisses Pardal, hoje museu do canteiro.

Faziam acampamentos, teatros, fogos de conselho, farrapeiros, cantavam as janeiras, dinamizavam o carnaval, encomendavam almas, participavam nas procissões, faziam peditórios, praticavam a ecologia, ajudavam na missa, enfim, um sem número elevado de tarefas que os mantinham ocupados e ali aprendiam, fora da escola, as noções de civilidade, convívio e respeito pelos outros.



Nos acampamentos aprendiam a cozinhar, a limpar, a dobrar roupa, a arrumar a barraca e a cozinha, a acender uma fogueira, a conhecer as estrelas, a dar nós, a cortar lenha e, em concorrência a disputar qual era a melhor patrulha, a seguir uma pista, a formar em parada quase militar, e a manter a farda, uniforme, devidamente ataviado.

Já não era obrigatório, confessar e comungar…

Socialmente, o corpo escutista, era formado maioritariamente por estudantes, mas era bastante interclassista para a época.



Com a crise das festas e na iminência de a festa da Santa Apolónia acabar, foram os escuteiros que durante dois ou três anos ajudaram a manter esta tradicional romaria, que hoje está numa UCC, unidade de cuidados continuados.

Mas o padre Álvaro não era só isto, começou também a interessar-se pelo Alcains adormecido, pelos alinhamentos e a interferir e a criar grupo de reflexão e com intervenção.

Alcains, com alguns dos melhores homens a saltar a fronteira, começou a receber suados e escravizados francos franceses, que anos mais tarde, originaram o Alcains de hoje.

Alinhamentos, loteamentos, novas ruas, projetos, esgotos, água, luz, arquitetura, câmara, junta.



Fruto já desta “jeropiga” que com o padre Álvaro tomava, aí pelos meus 16 ou 18 anos, 1966/68, escrevi pela primeira vez para o Reconquista um artigo, que o padre Álvaro corrigiu profundamente, mas de que me lembro de uma frase mais que querida, de “tanto batida” que não mais esqueci.

“Quando é que Alcains terá homens que, ponham os interesse de Alcains, acima dos seus interesses pessoais”. 

Tenho pena de não ter recorte do jornal, mas esta frase foi objeto de elogio por parte de uns e desagrado por parte de outros, chegou ao conhecimento de meu Pai, que me interrogou sobre o que é que eu andava a escrever…

Na altura estava em fase final a construção a rua do chafariz velho, que ao que se dizia, alinhava ao sabor de um garrafão de vinho, rua estreita com quintais enormes que dariam para alargar muito mais a rua, curva arredondada em função da gestão dos vários equilíbrios, que os interesses particulares, sem qualquer controlo dominavam.

Estava-se em ditadura, não havia escrutínio, e os homens da junta de então, escolhidos a dedo por quem mandava, pouco ou nada poderiam fazer.



Conspirava-se entre amigos, a ânsia de Alcains ser uma terra próspera e linda, pontificava, e a vontade de mudar as coisas era evidente. Alcains queria e merecia mais.

O selo branco dos atestados e o carimbo da junta, dormiam em casa do secretário.

A minúscula sede da junta de então, já não existe, situava-se no início da rua do Espírito Santo, tendo sido destruída anos depois, para se alargar e dar acesso à rua do Vale do Bravo.



Foi entretanto batizada popularmente por “rua do Funil”, hoje rainha Dª. Leonor, (séculoXV), muito larga do lado do Espírito Santo e, estreita do lado da rua do Vale do Bravo, parodiada em desgarrada de quadras soltas, na casa do povo por mim cantada, como mostra a foto aqui publicada. 


Alcains tem belas ruas, 

Avenidas mais de mil, 

Mas a mais bela de todas, 

É a rua do funil.




Escrito de memória, este primeiro texto sobre Bairrismo, vai continuar.

Considero pelo que escrevi, que o senhor padre Álvaro foi um bairrista, na mediada em que, exercendo o seu “munus” espiritual, foi mais além, pelo dinamismo que imprimiu na juventude da altura em Alcains, pelos homens que formou, e pela luta contra o adormecimento autárquico de então.

Desde há uns bons anos que o escutismo acabou em Alcains, e essa falta, faz-se sentir. 


Manuel Peralta


Nota. Como refiro este texto é exclusivo da minha memória, pelo que quem me lê, pode e deve corrigir, qualquer situação que considere menos correta, ou acrescentar algo de interesse, que publicarei.

No blogue, em comentário, pode fazê-lo. 

Os personagens das fotos, escuteiros e não escuteiros, ficam para vossa descoberta.

Bem hajam.

1 comentário:

  1. Excelente testemunho que enriquece a historia de Alcains e seus habitantes.
    Muitos parabens.

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