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sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

Marcelino da Mata - Um herói, para quem esteve na guerra, na Guiné-Bissau



Não podia deixar passar em claro e, para memória futura, escrever algo sobre este meu companheiro de armas, que na Guiné-Bissau ao lado dos Portugueses, lutou contra os guerrilheiros do PAIGC, (Partido Apoio Independência da Guiné e Cabo Verde), partido este chefiado por Amilcar Cabral, de nacionalidade Caboverdeana, na guerra colonial.

Embarquei para a Guiné-Bissau em 16 de julho de 1973, no paquete Niassa, no cais da Rocha do Conde de Óbidos, com o posto de alferes miliciano de transmissões de infantaria, do batalhão de caçadores de infantaria nº 4516/73 do CTIG, comando territorial independente da Guiné.

O Niassa atracou na Madeira para ali embarcar uma companhia de madeirenses, que juntamente com o nosso batalhão, navegou até à foz do rio Geba e ali desembarcámos pelo cais da Amura.

De LDG, (lancha de desembarque grande), navegámos até uma das muita ilhas da Guiné, denominada Bolama, e ali no CIM, (centro de instrução militar), fizemos o IAO, (instrução de adaptação ao terreno operacional).

O batismo de fogo aconteceu ali em Bolama no dia 3 de agosto de 1973, com uma flagelação, (ataque) de mísseis SAM-3. (ver foto do pente africano, que ali comprei e inscrevi a data do ataque).



Disparados a cerca de 10km de Bolama, por volta das 18 horas locais, de um local denominado “S.João”, um míssil acertou na parada do quartel, matou 2 soldados guineenses e, um soldado do nosso batalhão. Dois mísseis caíram no mar, e dois dentro de Bolama, um destruiu o monumento que celebrava uma travessia aérea por um piloto italiano, e outro destruiu totalmente o cinema de Bolama, fazendo um buraco na rua em que cabiam duas camionetas berliet.(na foto seguinte, ao fundo uma berliet).



Estava na messe de oficiais e, ao ouvir a expressão “uma saída”, som semelhante ao fecho da tampa de uma arca frigorifica horizontal, todos os que por ali estavam, refugiaram-se no abrigo subterrâneo, que fica por baixo da messe.

Já não se jantou, e nem se dormiu no quartel, pois deambulámos em pequenos grupos, noite fora pela aprazível ilha de Bolama.

No dia seguinte, tudo voltou ao normal, possível, mas pela primeira vez, acordei, acordámos, mais preparados para o que significa na realidade a palavra, GUERRA... viver ou morrer.

Finda a instrução, IAO, em LDG navegámos através do rio Buba, até uma localidade em terra com o mesmo nome, Buba, e ali desembarcámos.

Na margem um grupo de soldados eufóricos, de armas nas mãos, cantavam loas aos “piriquitos” que acabados de chegar, os renderiam após 24 meses de comissão numa guiné a ferro e fogo.


Piriquito, vai no mato, óh lé, lé, lé.

A velhice vai no bissau, óh, lé, lé, lé.

Apanhar a LDG, óh, lé, lé, lé.

Não faças cara de pau, óh, lé, lé, lé."


Três urnas ali alinhadas aguardavam embarque, reparei.

Ao fim da tarde desse dia, ouvi pela primeira vez o troar de obuses de 160 mm, que faziam batida de terreno, em guerra preventiva de fim de tarde.

Em coluna militar, as 4 companhias do batalhão, desafiavam os imensos buracos da picada, com lama pelos eixos das rodas das estafadas berliet, a caminho de Aldeia Formosa, hoje Quebo.

Em Aldeia formosa, onde havia uma enorme tabanca super povoada de guineenses, o quartel resumia-se a um único pavilhão, com uma casa de rés do chão.

Todos ficámos em tendas de campanha, uma vez que no local, uma companhia de engenharia tinha a lenta missão africana de construir os pavilhões para as companhias.

Que nunca se concluíram.(ver foto da minha tenda “tipo 2o, 2 oficiais”.



A CCS, companhia de comandos e serviços à qual eu pertencia, ficou em Aldeia formosa mais uma companhia operacional, outra partiu para fazer segurança em Colibuia na construção da estrada para Cumbijam, e outra começou a fazer colunas de reabastecimentos.

O meu batalhão tinha cerca de 15% de “quase analfabetos”, a que me dediquei para passar o tempo a dar aulas regimentais. Como acumulava com o lugar de “oficial de ação psicológica”, diziam as NEP, Normas do Exército Português, que se deveria prestar aos guineenses todos os cuidados quer de saúde, quer de educação, entre todos os outros.

Por esta razão era professor primário de cerca de 20 alunos guineenses, e de os disponíveis portugueses do batalhão.(ver foto dos meus alunos, com 2 furriéis e dois cabos de transmissões).



Nesta realidade, aprendi que a cor da pele nada tem a ver com a inteligência, e que, o que determina a vida de cada um, é, entre outras coisas, a sua capacidade de, com trabalho sério, fazer pela sua vida… tinha então 24 anos.

Como acumulei com a pasta da intendência do batalhão, o alferes desta pasta tinha ficado na “guerra do ar condicionado em Bissau”, o pai dele era quadro da ANP (Ação Nacional Popular), vinha por vezes a Bissau levantar milhares de escudos guineenses para pagar os “prés”, aos soldados e ao pessoal do batalhão.

Em Bissau, os comerciantes ou eram portugueses ou caboverdeanos, assim como os taxistas, os empregados do comércio, os funcionários públicos, enquanto os guineenses varriam as ruas, fritavam nas cozinhas, limpavam as casas do portugueses e dos caboverdeanos, de tal modo que, após o 25 de abril, não ficou na guiné nem português nem muito menos qualquer cabo verdeano. Para que conste nos anais do multiculturalismo...



Aldeia Formosa era a localidade mais importante e perto de Guileje e Gadamael, que o PAIGC tinha ocupado.

Nesse tempo, os mísseis Strela de fabrico soviético, tinham tornado quase inoperacional a nossa frota de FIAT G91, que tanto ajudou as NT, (nossas tropas) nesta guerra.

Os valorosos paraquedistas, nossa tropa de elite, juntamente com o grupo do Marcelino da Mata, e apoiado por companhias de caçadores, libertaram estas localidades e ao mesmo tempo, resgataram um piloto aviador que se havia ejetado do avião abatido por um míssil Strela.

Tendo passado com o seu grupo de combate por Aldeia Formosa, sede do meu batalhão, este valoroso militar, humilde, condecorado, era um exemplo para todos os militares que nesta frente lutavam.

Quando, por perto com o seu grupo, não havia ataques, os “turras” ficavam longe do arame e dos postos avançados de guarda aos militares confinados ao arame farpado do quartel.

Dormia-se então quase descansado.



Emboscadas, ataques ao arame farpado, flagelações com morteiros, de tudo um pouco se fez esta guerra.

Do meu batalhão ficaram por lá 9 portugueses.

Aconteceu entretanto o 25 de abril. Tive mais receio de estar na Guiné depois do 25 de abril do que antes. Com o PAIGC a fazer comícios à porta do quartel, a nossa bandeira deixou de ser içada e, arriada ficou por ali.

O Sipaio, “presidente da freguesia”, nosso colaborador, de Aldeia Formosa foi evacuado de emergência para Bissau.

Gradualmente e após cessar fogo que convinha aos dois lados, as nossas tropas, foram sendo evacuadas para os arredores de Bissau, e no Ilondé, o nosso batalhão aguardou embarque.

Tal aconteceu em finais de setembro de 1974, em avião militar que nos trouxe para a metrópole.

No Portugal do pós 25 de abril, foi o Marcelino da Mata torturado por uma rapaziada que usava a farda dos que contra nós combatiam na Guiné, e, teve de fugir para espanha para se livrar da morte certa dos ditos militares democratas de então.

Entretanto a Guiné-Bissau, faz hoje parte dos estados párias, e é um dos países mais pobres do mundo.

Mais informação sobre o Marcelino, nestes endereços.


Blog «Os dias do Strela há 40 anos na Guiné»

FaceBook relacionado


Porque a folha de serviços do Marcelino da Mata é extensa, sugiro a leitura deste artigo do jornal Observador. (ver foto dos elementos das transmissões do batalhão, frente ao abrigo subterrâneo dos posto das transmissões)


Manuel Peralta




Tenente-Coronel Marcelino da Mata


Numa entrevista que lhe fiz faz já alguns anos comecei por uma pergunta elementar: o que é que havia levado um guineense retinto, como ele a combater o PAIGC, bandeira de tantos guineenses como ele na causa da independência da Guiné? A resposta que parecia ter na ponta da língua foi pronta e singela: não fora ele o único e todos os que, como ele, seguiram esse caminho, foi por se considerarem portugueses. Um português da Guiné tinha o “dever” de combater o PAIGC, acrescentou.

No seu caso houvera, contudo, outra razão pessoal, de vingança, como fez questão de precisar. Em 1962 um grupo armado do PAIGC matou-lhe o pai, bem como uma irmã, de seu nome Quinta da Mata, que estava grávida de oito meses. A mãe, desesperada, fugiu para Bissau onde ele, ao tempo, viria a cumprir o serviço militar obrigatório que era próprio desses tempos.

O sentido de missão com que encara o serviço militar leva-o a voluntariar-se para frequentar um curso de Comandos. Também o atrai o garbo daquele corpo de tropas especiais. Passou com boa classificação e não tardaria vir a ver-se integrado num grupo de Comandos, o primeiro a operar na Guiné, cujo comandante foi o Alferes Sousa Saraiva. Marcelino, um dos 25 elementos do grupo, tinha então o posto de 1º cabo.

A sua vida operacional como Comando começou em 1964 quando participou na Operação Tridente que se desenrolou na Ilha de Como, sob o comando do Comandante Alpoim Calvão – do qual falava, carregando sempre na expressão, como “o mais valente” militar português que passou pela Guiné. A seguir punha na lista os nomes de António Ramos, Carlos Azeredo, Carlos Fabião e Lobato Faria.

Integrado no grupo de Comandos do alferes Saraiva ainda participou noutras operações convencionais, como a de Canchafá, a Norte de Pirada, na qual o seu desempenho lhe valeu a promoção a Furriel, por distinção. Mas será já como comandante de Grupos Especiais, primeiro os “Roncos”, de Farim, depois os “Vingadores”, que viria a distinguir-se e a adquirir fama. Cedo passaria a 2º sargento e depois a alferes.

Eram grupos de composição reduzida, no máximo 20 homens, dotados de grande mobilidade; actuavam à paisana ou com disfarces apropriados às circunstâncias e isso era para não deixar marcas, sobretudo quando os alvos a atingir se situavam no Senegal ou na República da Guiné. Montagem de emboscadas, assaltos, minagens e sabotagens – eras essas as acções mais usuais. Ao todo, mais de mil. Nunca foi ferido.

A operação de que guardava “boa memória”, dizia assim, foi, porém a do resgate de um piloto, tenente Miguel Pessoa, que se ejectara de um caça Fiat G-91 depois de o aparelho ter sido atingido na cauda por um “Strella”. O corredor de Guiledje no qual o tenente viria a cair era uma zona infiltrada pelo PAIGC. Não havia tempo a perder para evitar que caísse nas suas mãos. Ao cabo de uma noite de progressão na mata, os “Vingadores” de Marcelino da Mata, reforçados com um grupo de pára-quedistas, deu com o piloto, ferido, e procedeu ao seu resgate.

O PAIGC execrava Marcelino da Mata e o seu grupo – em especial o seu “trabalho”. Tratava-o por sanguinário e traiçoeiro. Negava os epítetos revelando-me que passara a levar para as operações um corneteiro, Putna, com a função bizarra de anunciar ao adversário o lançamento das suas operações. “Djunto”, nome pelo qual tratava um homem franzino que veio com ele para a entrevista, confirma a façanha. Era o seu adjunto nos “Vingadores”. Assim olhava ainda para ele.

No dia 25.Abril.74 estava estacionado com o seu grupo em Gadamael, quando o comandante do Batalhão de Aldeia Formosa lhe comunicou, de chofre, que “a guerra acabou”. Já não precisava de continuar com as suas operações de localização e assalto de bases do PAIGC ou de perseguição de grupo itinerantes de “terroristas”, como ainda na véspera eram tratados (mas depressa deixaram de ser).

À medida que os ardores revolucionários avançam na Metrópole (o anti-colonialismo é um dos seus principais alimentos), Marcelino da Mata vê o seu passado e a sua história virarem-se cada vez mais contra si próprio. A 12 de Maio de 1974 deixa Bissau rumo a Lisboa, mas para isso precisou já de contar com a cumplicidade do último comandante da Base Aérea e seu compadre, o então Coronel Martins Rodrigues.

Os tempos que vive daí para a frente são de má memória. Diz que foi tratado “como um cão” pelos revolucionários e novos-revolucionários que o viam como um empecilho ou um intruso. Passou por estar ligado ao MDLP e isso custou-lhe dissabores como o de ter sido preso e seviciado. Só em 1980 a saga chegou ao fim. Foi reintegrado e promovido a Capitão (graduado em Tenente-Coronel). O império e as malhas que o mesmo tecia iam ficando cada vez mais para trás.


Xavier de Figueiredo

Colunista convidado do Observador

1 comentário:

  1. só agora tive oportinidade de ler o artigo, tenho que fazer um reparo, o A do pAigc significa AFRICANO. Como leitor assíduo do blogue LUIS GRAÇA & CAMARADAS DA GUINÉ ( desembarquei lá 5 anos antes) que conheço parte da história do BCAÇ 4515- Um abraço. João Antunes

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