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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Morrer em tempos de Covid

 


Decidi passar para o Terra dos Cães o meu testemunho, para que fique registada para a posteridade, a situação desta pandemia, que vai perfazendo um ano de existência no mundo.

Da China, Whuan, alastrou a todo o mundo.

Os relatos do jornais de hoje, 27.01.2021, dizem o seguinte.

Morrem 7 pessoas por hora, 162 por dia. Em janeiro deste ano, morreu mais gente por covid, do que entre março e novembro do ano passado. Se esta média se mantiver, em janeiro podemos ter 5 500 mortos.

Perante a medicina de catástrofe praticada na generalidade dos hospitais, todos os dias são anunciadas roturas. O governo pediu ajuda internacional, de médicos, enfermeiros e equipamentos, que não há…

Nestes dias de janeiro Portugal é o país do mundo com mais mortes e infetados por 100 mil habitantes. Triste classificação, no ranking mundial do covid.

As vacinas são objeto de discussão com o governo a querer dar prioridade aos políticos, alterando orientações da OMS, enquanto os mais vulneráveis, mais de 80 anos, ficam para trás. Noventa por cento dos médicos que prestam serviço nos privados, continuam por vacinar.

O preconceito ideológico matou e, mata diariamente muitos portugueses, sem que as autoridades que nos governam assumam as respetivas responsabilidades. Luta política entre Serviço e Sistema Nacional de Saúde.

Em Alcains, no Lar  Major Rato houve um surto em outubro, morreram 5 ou 7 utentes, mas por agora a situação, aparentemente, é calma.

Com tantas mortes há imensos funerais. E o que mudou?




Os funerais que em Alcains eram muito participados quer por amigos e familiares, são agora restritos, só entram no cemitério meia dúzia de familiares, os restantes ficam à porta.

O falecidos por covid, não mais são vistos por familiares, e, por vezes, estes ficam na dúvida sobre se o falecido, que encaminham para o cemitério, seria o seu familiar. 

Os utentes do Lar, que os filhos só vêm ao longe, quando adoecem, são levados para o hospital, e quando os voltam a ver, vêm apenas o caixão, que vem fechado pela funerária.

Esta situação, vai ter e tem graves consequências futuras. no equilíbrio psicológico das pessoas. Ficam muitas dúvidas que caminharão ao lado destas vítimas, durante toda a vida.

Porque na vida necessitamos de ter sorte, ONDE se nasce e QUANDO se nasce, descrevo de memória de minha mãe e minha, como ficamos em paz, quando a normalidade nos acontece, e os funerais em paz e tempo, se realizam.




Quando a minha mãe, que nasceu em 1925, viu falecer a sua mãe, minha avó Antónia Minhós, avó muito religiosa, “os minhoses rezam pai nossos como quem come tremoços”, tinha a minha mãe 16 anos.

Ficou a minha mãe com o pai, meu avô, único que conheci, e com o qual 19 anos convivi, e, três irmãos, Manel, João, e Martinho.

Minha mãe, ficou entregue a si mesma e, às tias.

As tias e cunhadas foram ao funeral, em 1941, todas vestidas de preto e com a cara tapada por um lenço muito semelhante ao lenço dos muçulmanos, a burka. 

Chamavam-lhe “Côca”, e este lenço era usado na altura e claro muito antes de 1941, pelas viúvas durante pelo menos meio ano e, por familiares mais próximos em função da proximidade com o falecido.




A minha querida mãe que era muito “gaiteira” por vezes, já com lenços de cor e ao brincar comigo e para me meter medo, punha a côca, que era um lenço de forma de triângulo retângulo com a hipotenusa alongada para a frente que não deixava ver a cara, e era assim que se brincava…

Julgo que daí nasceria a expressão, hoje ainda usada em Alcains, “ Olha que se não comes a sopa, vou buscar a côca”, que em lenço preto metia medo…côca,…côca,…côca.

“Correu o povo todo” e mais algum, digo agora eu, a notícia que a filha da Antónia Minhós ia no funeral da mãe de “xaile traçado”… e “ sem mantilha” isto porque na altura o verdadeiro luto, o funeral, era de xaile pela cabeça, mantilha até aos pés, e cara nem vê-la…a dor e sofrimento, dizia a minha mãe, era vista como hoje são os sinais exteriores de riqueza, digo agora eu…




Mais tarde, em 1973, 32 anos depois, faleceu o meu avô. Estava eu em Tomar, na tropa, a formar batalhão para a guerra colonial na Guiné-Bissau

No funeral, a minha mãe toda de preto e ainda com xaile, mas já sem burca, (côca), as primas, muitas, todas de preto, os filhos de chapéu preto, fita preta no braço esquerdo e uma tira preta na lapela do casaco.

A nossa casa, na rua do degredo nº 22, onde vivi 23 muito felizes anos, era de sobrado, e o féretro estava no 1º andar a ser velado.

Como o vão era largo, tiveram que colocar no rés do chão, escoras para o sobrado não “avagar”. Ninguém se deitou nessa noite, mulheres em cima, homens em baixo, aquecendo-se estes em “estrado” com  “braseira de lata”, com “munha e caramunha”…




No primeiro andar estava e ficou armado o altar e a mesa  onde tinha estado o corpo morto do meu avô, os parcos móveis e os muito santos nas paredes todos coberto com panos pretos.

Vindos do funeral, fiquei nessa noite só com a minha mãe. 

Os telefones estavam em lista de espera e, só no dia seguinte, no telefone público na taberna do “Ti Domingues”, demos a notícia ao meu pai, em frança.

Cumprindo a tradição, em nada se podia mexer, pois no dia seguinte, o Sr. Vigário, o sacristão, um acólito com tronitruante campainha, a cruz dos funerais, e todas as muitas pessoas que tinham ido à missa da manhã, com os sinos da igreja em desalmado despique, vinham à casa do defunto, fazer as últimas rezas aspergidas de água benta incensadas por “turíbulo” que em mão diligente acendia brasas e perfumava a casa toda.




Nessa noite, a minha mãe que dormia no quarto de baixo e eu e o meu avô cada um em seu quarto no andar de cima, ter-me-á perguntado, se não tinha medo de dormir lá em cima.

Com uma memória de aluna que se vangloriava perante o meu pai de que fez a 4º classe com distinção, era a “paixita” da escola, 

recordava-me que lhe terei respondido, … “ não Mãe, não tenho medo de quem se gosta”.


Funerais de 1941, 1973, 2021, como tudo mudou.


Nestes tempos de confinamento total, e ao olhar para trás, só me resta estar feliz pelos tempos passados. Hoje os familiares dos que morrem não têm esta felicidade que acabo de descrever.



Manuel Peralta

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