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sábado, 3 de novembro de 2012

A FEIRA DOS SANTOS

Na passada quinta feira, dia 1 de novembro, realizou-se pela última vez e ao que parece até 2018, a feira dos Santos em dia feriado.
A romaria aos cemitérios acontece neste dia, dia de Todos os Santos.


Uma vez que, cada dia de calendário é dia de um Santo, e como neste mundo ingrato em que vivemos todos os dias a “rapaziada” que nos governa faz mais Santos, há portanto muito mais Santos que dias de calendário.
Atenta, a Santa Madre Igreja, ao princípio de que nenhum Santo pode e muito menos deve ficar esquecido, celebra e bem, este acontecimento de todos os Santos, em festa comum a todos Eles.
Na terra deles, desde tempos mesmo muito idos, que neste dia se realiza a única feira de Alcains, a popularmente apelidada de feira dos Santos.


Então prima, não vens aos Santos? Não vou, este ano calha ao meio da semana, e na escola está a Ana, respondeu.
Por outro lado, a Santa Sé e a “rapaziada”, enganaram-se na expressão usada nas negociações sobre a supressão dos feriados religiosos. Usaram na lei a expressão “supressão”e agora querem fazer uma EMENDA trocando supressão por “suspensão”. Para um aluno que não se tenha arrelvado na 4ª classe da Dona Amália, supressão quer dizer, cessar, cortar, retirar, abolir e anular, enquanto que, suspender quer dizer, interromper temporariamente.


A propósito de “emenda”, recordo uma expressão de ingenuidade feliz, aprendida na doutrina, por uma minha prima, Manuela, que respondendo a pergunta de tecedeira catequista, em doutrina de ouvido aprendida.
Pergunta a catequista tecedeira.
Onde está Deus?
Respondia a minha prima.
Está no céu e na terra e em toda a parte, que ELE não tem emenda... !!!
A resposta correta seria, “está no céu e na terra e em toda a parte que ELE é imenso”.
Naquela sonora “matrassa”, acompanhada a toque de tear, a santa ingenuidade pairava no ar... 


Por outro lado, o Tozé, seguro nas suas multifacetadas convicções, já disse que quando a sua “rapazida” chegar ao lugar, num ato de acrisolado patriotismo, tudo isto irá mudar.


O dia de Todos os Santos, descreve a enciclopédia Católica, começou no século II, ano duzentos, e destina-se a prestar honra a todos os Santos conhecidos e desconhecidos. Por cristãos começou a ser praticado, em homenagem aos que, de entre os seus, haviam sido martirizados e que acreditavam que, por terem sofrido martírio idêntico ao de Cristo, estariam com ELE no céu.


Hoje os martírios são diferentes, e todos os dias há cada vez mais Santos e Santas... desempregados, reformados, trabalhadores e até senhores, muitos doutores, espoliados à facada pela “rapaziada”.


Desconhecem-se as razões pelas quais, o Papa Gregório III, anos 731-741, marcou esta data, 1 de novembro, mas é desde este Papa que a data se mantém intacta.
Nas deslocações dos familiares aos cemitérios para homenagear, rezar, chorar e recordar familiares e amigos, colocando-lhes flores, crisântemos, nas campas e jazigos, este dia mantinha em muitos terras um peditório feito pelas crianças, pedindo “Pão Por Deus”.


Esta tradição remonta ao ano de 1756, um ano depois do terramoto de 1755 que destruiu Lisboa e por esse motivo causou muita fome.
A pobreza apoderou-se de muita gente de tal modo que, espontaneamente, em 1 de novembro de 1756 os habitantes de Lisboa aproveitaram a comemoração do feriado de Todos os Santos, saíram pelas ruas e de porta em porta pediam “Pão Por Deus”, para lhes minorar a fome, agravada pela destruição do terramoto.



Esta tradição estendeu-se bastante por todo o país e, em alguns locais passou a ser conhecida por “dia dos bolinhos”.
Nas décadas de 60 e 70 foram impostas regras e, o “Pão Por Deus”, apenas podia ser pedido por crianças com menos de 10 anos de idade, e, até ao meio dia de 1 de novembro.


A tradição de “Pão Por Deus”, gradualmente, foi-se perdendo e, hoje, é praticamente irrelevante. Aparecem por vezes em Alcains umas crianças pedindo uma “esmolinha”, crianças estas sem ar de pedintes, mas presumo que o fazem, eventualmente por mando dos pais, sem o conhecimento da raiz desta perdida tradição.


Com o copianço das tradições, por um lado das terras do “Tio Sam”, isto é da América, e, por outro dos países anglo saxónicos, e, ainda por mais um lado, da sociedade de informação e da exposição televisiva, esta tradição do “Pão Por Deus”, tem vindo a ser substituída pela tradição do “Halloween” ou “Dia das Bruxas”.


Todos os anos temos de “gramar”, com muitos milhões em compensações e indemnizações, e, na renda mensal da taxa do audiovisual a gastadora RTP-1, RTP-2, RTP-África, RTP-Internacional, RTP-Memória, RDP-Antena-1, RDP-Antena-2, RDP-Antena-3, o inigualável Padre Fontes, nas terras de Montalegre, tratando da vidinha, por vezes no consultório no Centro de Saúde Estatal Local, e que, com cara de quem não bebe, brinca ao Halloween à moda de Montalegre.


No dia 31 de outubro passado, depois de ter ido fazer um café ao meu pai, que, com 88 anos me vai dizendo, ó filho, eu não estou doente, estou é gasto... fui a pé até ao largo de Santo António.
Iluminação deficiente na ex-aldeia de Alcains, passeios prontos para aumentar a fatura da saúde a idosos que utilizam a estrada onde o piso é mais regular, lojas fechadas e prontas a vender ou alugar, pouca gente.
Alegria e feérica iluminação de causar tonturas, na barraca das farturas... 


Em tempos não muito idos, enquanto a “malta” da inspeção, ao longo do mês, “roubava” vasos, fazia também nessa noite, 31 de otubro, o baile da malta da inspeção.
Nesses tempos, os devaneios públicos não eram permitidos, as danças, uma ou outra escondida beijoca só atrás da porta, e para se apalpar tinha que se dançar.


A malta de agora, reúne-se a 31 de outubro,  naquilo a que se vai chamando o “Jantar das Maltas”.
Não apenas da malta que ia à inspeção militar esse ano, mas de todas as maltas, uma espécie de direito constitucional adquirido, de malta que nunca irá saber o que é uma posição de sentido...
Fruto da igualdade do género, isto é quer machos quer fêmeas, comem, bebem, fumam, e “mocham” cada um como sabe e pode... , enfim, um pagode.


Uma mais abundante alimentação, filhos do iogurte e de dormirem em cama onde se podem livremente estender, acabaram as camas da camarinha, não perplexo, fiquei, a perplexidade diminui na razão direta da medida em que vou deixando de usar cabelo, quando me parece que aquilo a que se poderia chamar de “canalha”, aqui com sentido de malta muito jovem, eu sei lá com um máximo de 15 a 17 anos, além de mocharem uns com os outros e umas com as outras, de  camisola estampada com o ano de nascimento, celebram com muitos anos de antecipação o ano em que se ia à inspeção.


Verdes, são os anos, verdes são os prantos... mas, não é agradável ver e assistir à competição pela maior cadela, bebedeira, de cervejas de litro na mão, e uma ou outra garrafa de vodka, em jovem mão apertada, que da vida sabe nada...
Vão para o carrossel, vomitam sem andar de corcel... 


Havia mesmo muito pouca gente, maltas, este ano no 31 de outubro.
Muito forte a presença discreta da autoridade a GNR, cujos comandantes, em Castelo Branco e à medida que vão saindo, repito, e à medida que vão saindo, dizem que se torna necessário alterar o dispositivo... 


Já de regresso a casa, e ainda antes de chegar à dita zona de Lazer onde há muito por fazer, ali no largo do chafariz eternamente velho, com iluminação de fraca candela, mais propriamente onde o Zé Russo, de carpinteiro de tosco e Parteiro reformado, horta faz por todo o lado, deparo-me então com um espetáculo digno de registo.
Por lamentável esquecimento não trazia o kodac.


Pardais à solta, ninhos de bruxinhos e bruxinhas, bem dúzia e meia deles e delas, herdeiros dilectos da saudosa “Ti Laranjinha” popularmente apelidada de bruxa e que residia em casa estreita, de tamanho de ovo, no largo do poço novo.
Ainda a conheci. Era uma mulher pequenina, tenho imagem de mulher linda, e como era pequenina e redondinha, batismo popular de laranjinha, não dito de malta, construção de peralta.


A tal dúzia e meia de bruxinhos e bruxinhas, de fato de cetim preto, com gorro abicado na cabeça, uns de capa outras de sapata, quase todos de telemóvel na mão, caminhavam um pouco sem destino, qual menino à procura de carinho.
Um fardado de bruxo mais velho, aí com uma dúzia mais dois a três, de anos, de telemóvel mochava e assim a pequenada controlava.
Nenhum ali tinha um papel, mas todos, em apressado passo, a caminho do carrossel.


Quando eu era um pardal à solta, o dia 31 de outubro não existia.
Criado com eira e alguma beira, ia nesse dia de todos os Santos, com os meus pais à feira.


Vindo dos lados do Degredo, normalmente em grupo com os vizinhos e um ou outro familiar, ia-se primeiro ao cemitério, visitar, rever amigos e familiares que ali em poucas campas de granito ou mármore ali tinham sido sepultados.
Não se vendiam flores, e a ostentação de hoje, encobrirá por vezes vidas aziagas, quase estragadas...
Chorava-se se morte recente tivesse acontecido, normalmente ainda de luto, consentido. Os homens de gravata ou fita preta no braço, as mulheres se viúvas, de negro preto xaile vestidas.


Conta-me a minha mãe, de memória de 87 anos, o que era a solidariedade no luto, entre primas e tias, que entre si combinavam o dia em que começavam a “aliviar o luto”.
Deixavam o preto profundo e vestiam uma blusinha preta com florinhas brancas e saia ou vestido a caminhar para acinzentado, até gradualmente e consoante as posse de cada uma, para um trajar normal, mas o luto nunca durava menos de 1 a 2 semestres. Viúva de luto, sempre.
Por vezes, ódios familiares de estimação, a quem rompia a combinação.
No tempo das minhas avós que não conheci, Guilhermina e Antónia, hoje os meus três netos têm ainda e felizmente as 4 bisavós, as mulheres viúvas eram socialmente obrigadas a usar a “côca”.


E o que era a côca?
As viúvas no tempo da minha avó que nasceu em 1898, trajavam de luto total. De xaile de merino e de lenço preto na cabeça. Só que o lenço, liso de preto, fazia um grande bico frente ao rosto, de tal modo que a cara da infeliz viúva não visse nem se visse.
Assim uma espécie de “tchador” das muçulmanas, sem a rede mosqueira à frente.


De regresso do cemitério e já da paixão aliviados, compravam-se então umas castanhas, umas maçãs, uma nozes a dentes partidas, e um ou outro mais atiradiço piscava olho a rapariga.
O largo de Santo António em terra por todos batida, tinha calçada apenas no caminho que dava acesso ao cemitério e era nesse caminho e perto do tanque que ali existiu e da loja da Ti Brandoa que os poucos feirantes, feiravam.
Eles e nós.


As tabernas, as muitas que por ali havia,  mesmo em anos de seca estavam inundadas de homens todos de chapéu, que bebiam uns copos, deslavados, por vezes traçado...
Bebia-se o “champerrion”, uma mistura adocicada de vinho, cerveja cergal, e laranjada Prata Cão. Colheres, várias de açúcar amarelo, para saber quase a farelo. Mas doce, mesmo muito doce.


Que me lembre poucas castanhas havia a assar, e os homens compravam então para mulher e filhos uns nacos de “trrum”, hoje conhecido por torrão de Alicante, e assim a roer e a comer num instante, se passeava a feira adiante.
A casa de banho era o universo, desta vez WC sedeado em pleno largo sem festa, em Líria descoberta.


Frente à horta da Dona Josefina onde havia muita tangerina, ficava então uma tenda, barraca do fotógrafo “á lá minuta”, fotógrafo, que enfiava na cabeça a carapuça, e prendia a tenção do menino, dizendo, “olhó passarinho. Na foto abaixo e saído do ninho e com meio, mais um aninho, peraltinho, de duplo caracol em rosto de sol, bem calçado, sapato de futuro muito emprestado, e com vontade de ser “urso”, de relógio de pulso.


Já de saída e onde hoje está a sede do “Glorioso Benfica”, iluminada a gasómetro estava um tendeiro que vendia um pouco de tudo.
Navalhas de enxertar, pentes, ratoeiras para escava terras, costis para apanhar tordos e taralhões, carteiras de cabedal e já em plástico para guardar documentos, por vota de 1960, imagens do Coração de Jesus e de Nossa Senhora, e um quadro de um menino a atravessar uma ponte em ruina, protegido e amparado nas graças de asas largas de um Anjo da Guarda.


O meu pai comprou e, desde então, em quarto de cal caiado, com uvas e marmelos nos caibros pendurados, pelo Anjo da Guarda, eram cuidados e por mim de palatos aguados, olhados.
Anjo da Guarda, minha doce companhia, guardai a minha alma, quer de noite, quer de dia.
Oração que a minha solteira Ti Ana Minhós, excelente doceira me ensinou a que mais tarde eu retribuí, dizendo, enxofrando-a, claro.
Como era muito religiosa e ainda mais temente a Deus, dizia-lhe eu.
Os Minhózes rezam Pai Nossos como quem come tremoços... 


Agora já em casa e com o Anjo da Guarda pendurado em parede de taipa, ia-se para a cozinha e ali em lareira com palameira assavam-se então umas castanhas em bruxa de barro e com encorpado farrapão para tapar e calar a boca da bruxa.
Só assim é que elas amaciam, dizia o meu pai, sem me explicar se se referia à bruxa ou às castanhas.
Respeitador e com receio de pergunta inconveniente, ainda hoje vivo com esta dúvida.


Sob as trempes, a bruxa, dentro da bruxa as castanhas, o crepitar do lume que é meia companhia, assim se acabava mais um dia.
No verão tinha-se feito um belo frasco de jinja, bem agardentado e com elas ou mesmo sem elas, era uma festa comer e recomer castanhada em prato azul resmaltado.


Pretendo dar a conhecer a quem o Terra dos Cães lê, o que foi a feira deste ano, e a que a minha memória regista.
As inúmeras fotos que tirei pretendem igualmente dar aos nossos emigrantes, de coração assolapado e prenhes de paixões saudosas da feira de tantas recordações, uma pincelada breve em tela de memórias que o tempo, este tempo, escurece.


Do Regato da Sola dos “tchapões que todos têm dois corações” até ao Zé Artilheiro que toda a vida foi canteiro, fica uma enorme vontade de continuar a relatar, para o emigrante desabafar...

Manuel Peralta

2 comentários:

  1. A colorida e bem humorada descrição da Feira dos Santos de 2012, fica quase como uma página para memória futura, quando daqui a alguns anos
    algum curioso aterrar neste site, para conhecer algumas das tradições e costumes desta terra.
    E corroboro muito do que foi escrito desde o retrato "à la minute" até à estampa do Anjo, amparando a passagem de crianças por uma ponte em ruínas.
    Ao Dia dos Santos, eu associava o "Santorum" a oferta normalmente em numerário que os meus avós me davam para comprar um Balão! E um bem grande regressava sempre comigo.
    Os carrocéis, recuando ainda mais no tempo, creio que até um Circo, esteve presente numa longínqua Feira dos Santos! A esta Feira, além do referido e bem por MP, pairam na minha memória, as alfaias para a apanha da Azeitona, que era tempo de começar. Escadas em madeira muito claras, varas, cestos e serapilheiras de grandes dimensões, que apanhariam o produto do
    varejar das Oliveiras. Os plásticos e as máquina de apanha mecânica, ainda estavam a décadas de distância.
    Há porém uns Santos, que jamais esqueci. Terá sido em 74, a 1 de Novembro, com os sonhos e as esperanças a todo o vapor, precisamente o oposto às sensações que hoje nos dominam, e em que na Casa do Povo, completamente cheia, decorreu uma sessão de Canto Livre. E Fausto, ele mesmo, em cima do palco cantando, " A Cantiga é uma Arma" e de viola ao ombro, qual G3, fazendo pontaria...Passaram 38 anos, foram-se muitas das esperanças, e com elas fingindo nada ser com eles, muitos dos que aqui nos conduziram! E isso sim! É a maior falha de uma revolução quase pacífica, e que tinha muito para dar certo! Não deu! E pior, retirou-nos a esperança!...A nós e aos que nos seguem!...

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  2. Uma feira com tradição que por este andamento também tende a acabar

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